A Marcha nos lembra da atualidade – e da necessidade – de recordarmos os feitos de Martin Luther King
Quadrinhos são realmente uma forma de arte magnífica. Tem o dom de suspender imagens no tempo. De tornar tangíveis momentos que na memória se tornam efêmeros. E certos momentos nós não podemos nos permitir a indulgência de tornar efêmeros. A marcha de Martin Luther King e John Lewis pelos direitos civis no Estados Unidos, durante os anos 60, é um deles. Que imensa felicidade para aqueles que apreciam quadrinhos, história – e, porque não, a justiça – que o próprio John Lewis tenha escolhido a boa e velha Nona Arte para nos lembrar de sua trajetória, em A Marcha – Livro 1, lançado recentemente pela Editora Nemo.
Auxiliado por Andrew Aydin e Nate Powell, John Lewis nos apresenta a história da união dos afro-descendentes americanos na busca pela igualdade de direitos – a inglória tarefa em um país ainda abertamente racista e segregacionista que foi realizada com sucesso, mas não sem ao custo de violência e mortes. É até particularmente curioso que a HQ esteja chegando aqui em 2018, um período em nosso próprio país se vê às voltas com movimentos reacionários ganhando força. Mas não deixa de ser infinitamente mais importante de ser analisado dentro do próprio contexto americano imediato, visto que os EUA sofrem notadamente, desde a eleição de Trump, com convulsões etno-raciais – além de graves denúncias de violência policial contra a população negra.
John Lewis conheceu de perto aquilo que se relativiza em estatísticas. Não havia diálogo entre sua raça e a raça que, ainda nesse contexto histórico, é inevitável chamar de “dominante”. E, talvez por isso, seja notável perceber o tamanho do esforço que era adotar a estratégia de Luther King, que inspirou tantos outros como o próprio John Lewis: o silêncio. King entendia uma lógica bastante simples: para qualquer bruto que só conheça a linguagem da violência, qualquer linguagem é violência. Os desenhos de Nate Powell retratam vívida e visceralmente os relatos de John Lewis sobre as dificuldades dessa estratégia – aguentar silenciosamente, na melhor das hipóteses, a humilhação e o escárnio; na pior, as agressões, que frequentemente levavam a assassinatos.
Narrativa sóbria
Apesar da descrição acima, é preciso ressaltar que a narrativa tem muito menos preocupações éticas e históricas do que em relação à sua construção dramática. O que não é um demérito de forma alguma; mesmo se fosse ficção, a história seria excelente. Existe uma preocupação cuidadosa por parte de Aydin em apresentar os eventos e personagens sem todo o peso histórico que já os cerca, permitindo que, principalmente aqueles que desconhecem o desenrolar desses eventos, vejam uma narrativa coerente sendo construída, sem a necessidade de referências externas para compreender o que ali está acontecendo e a mensagem que está sendo transmitida.
De fato, a progressão da narrativa vai e volta no tempo, continuamente apresentando novos fatos, concomitante às perspectivas que são dados a eles. Dessa forma, tudo o que acontece é colocado dentro de um contexto distanciado, o que nos leva a uma das características mais importantes da HQ: apesar do tema extremamente delicado, A Marcha não se priva de falar sobre o que é necessário, mas sem se apresentar de forma vitimista. Embora seja sim, uma narrativa dramática, é chocante notar, ao término da leitura, que toda a tensão da história não é oriunda de nenhum elemento ficcional; Lewis, Aydin e Powell apenas permitem que a brutalidade dos próprios eventos reais se sobressalte às perspectivas de Lewis sobre os eventos, que são muitos mais gentis e condescendentes do que se poderia esperar de alguém que testemunhou – e sofreu – toda aquela violência.
O que não deixa de ser coerente com a própria proposta da resistência pacífica, associada à desobediência civil. Afinal, apenas alguém com a plenitude de espírito necessária para isso seria capaz de passar pelo que eles passaram. E, nesse caso, o que é necessário exaltar é a arte de Powell. Artista veterano, seu traço certamente lembrará aos leitores mais novos e pop dos desenhos de Charlie Adlard, um dos criadores do fenômeno The Walking Dead. Seu traços são limpos, mas intensos; e o contraste do branco e preto das linhas com a colorização em tons de cinza transmite com precisão o tom e sentimento da HQ: saudoso, centrado, mas não sem um certo aspecto melancólico. As expressões apenas ligeiramente angustiantes dos negros diante de situações em que percebem que o inevitável está prestes a se suceder marcam o leitor; às vezes, a comoção provocada pode ser um pouco sobrepujante.
Arte digna
Não obstante, Powell, que é egresso dos círculos alternativos dos quadrinhos oriundos das escolas de arte, ainda se permite pontualmente a certos recursos visuais um pouco menos habituais, assim como enquadramentos que valorizam momentos dramáticos. Poderia haver outras maneiras de contar essa história; mas o trio de autores prefere valorizar os sentimentos gerados pelas circunstâncias, na forma de belos e expansivos quadros que tomam toda a tela, ou em diagramações que obedecem com precisão à necessidade do momento; em detrimento de tornar a HQ meramente panfletária, ou pior, numa estéril exposição de fatos sobrepostos. A Marcha, dessa forma, não possui apenas um valor histórico e social inerente, mas também se configura um belo exemplar de boa história em quadrinhos. E, para nossa imensa felicidade, este volume aqui resenhado é apenas o primeiro; seguem-se duas peças ainda, lançadas originalmente nos EUA entre 2015 e 2016.
Assim, A Marcha se constitui num item interessantíssimo para leitores de HQ, e necessária para quem se interessa pela história dos EUA. Entretanto, nesses tempos que anunciam nuvens socialmente retrógradas sobre nós, diremos, sem nenhum pudor, que ela é necessária para todos. Porque, infelizmente, no fundo, ela não trata sobre um movimento específico ou um determinado evento; essencialmente, ela se refere à uma parte inexorável – e triste da natureza humana como um todo. Frequentemente nos vemos às voltas com sentimentos de ódio, de justificar nossos problemas ou nossas precárias conquistas através de uma alteridade pervertida – o “problema é sempre o outro”. Mas, conforme John Lewis e Martin Luther King demonstraram, junto a muitos outros, quem quer que lute contra os direitos civis e de igualdade estará, invariavelmente, do lado errado da história. Um dia aprenderemos.
Afinal, como disse o próprio Pastor: “eu tenho um sonho”.