A Luz que Fenece se utiliza de referências conhecidas para compor uma obra envolvente
Existe uma luz que brilha perene dentro de todos nós. Essa metáfora imortal é transmitida geração após geração por artistas, escritores e filósofos, exaltando, para usar o lírico aforismo nietzscheano, a vontade de potência que todas as pessoas possuem. A luz traz a vida. A luz faz florescer. E é na ausência da luz que tudo perece. Essa breve reflexão é o pilar da HQ da italiana Barbara Baldi, A Luz que Fenece, publicada recentemente pela Pipoca & Nanquim.
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A HQ é um belo êmulo de trabalhos da literatura vitoriana – se as irmãs Brontë conhecessem alguma coisa sobre narrativas visuais, provavelmente teriam produzido algo como isso. Talvez, de fato, a trajetória desta protagonista lembra as primeiras desventuras de Jane Eyre – o que dificilmente é uma coincidência. É um drama sensível, sem grandes arroubos de tragédia; é uma trajetória descendente em direção à resignação e à melancolia, onde as circunstâncias não provocam grandes reviravoltas. Elas consomem o ímpeto da protagonista aos poucos, tal qual o pavio de uma vela perdura com seu tempo previamente determinado.
Esta protagonista é Clara Sutherland, uma jovem de aspecto encantador não apenas pela sua beleza, mas também por seu talento para a música. Ela atrai todos à sua volta como um fio de juventude e esperança para o futuro – até que o futuro inevitavelmente chega, transformando tudo, incluindo Clara. Sua avó, Lady Sutherland, cujas riquezas, benesses e amor delegados à neta permitiam que essa florescesse imaculada, acaba falecendo. Clara é extremamente apegada à sua avó, e sua morte representa um imenso impacto. Para muitos, poder-se-ia imaginar que, sendo herdeira da mansão de sua avó e compartilhando as riquezas dela com sua irmã, Olívia, Clara teria um futuro brilhante e promissor de conforto e dedicação à música.
Dor e cor
Um dos aforismos destrinchados por Baldi na obra é que dor atrai dor. Mesmo com todos os bens materiais agora à sua disposição, Clara parece não encontrar consolo. A morte de sua avó ainda oprime sua natureza positiva e esperançosa, e o peso das responsabilidades parece se acumular, esmagando sua vontade. Existe uma profunda injustiça na narrativa, que também não deixa de ser uma proposta reflexiva da autora: como muitas mulheres, ainda hoje, Clara foi mantida em uma bolha, tratada como um bibelô.
Quando a realidade inexoravelmente se projeta em algum momento, a figura feminina acaba rompendo e tratada como frágil e incapaz pelos seus pares, em um cinismo cíclico que só termina por minar ainda mais a vontade da protagonista – a titular luz que fenece. É uma brilhante – sem trocadilhos pretendidos – e melancólica composição que celebra a literatura vitoriana, tão cara à tantas mulheres.
De fato, a intenção latente da autora é tornar A Luz que Fenece em uma ode à segunda metade do século XIX. Não apenas a narrativa explora as nuances sombrias da literatura vitoriana – uma clara aproximação, novamente, do bildungsroman e dos elementos de literatura gótica típicos das Brontë, como sua arte se inspira e homenageia a pintura impressionista, movimento tão típico e característico do último quinquênio do século retrasado. Mas Baldi não se calca apenas nesse fundamento explícito.
Embora os ambientes exteriores e cores sob a luz cativem pela sua pluralidade, os ambientes internos, conforme a narrativa ganha tons mais lúgubres, adquire características barrocas de cores escuras e tons pastéis de marrom e negro. O que permanece reluzindo nessa etapa posterior e opressora da HQ são os olhos – sempre eles – cujo azul safira ainda pontua a composição obscura com resiliente cor. Tal qual uma única vela bruxuleando na escuridão.
Embora arte e narrativa sejam bastante referenciais e derivativas, o conjunto simplista – sem ser simplório – de A Luz que Fenece acaba envolvendo facilmente o leitor.
A imersão na obra é fluida porque, justamente e de muitas formas, sua narrativa e arte nos parecem relacionáveis; como quando visitamos um lugar que já vimos em fotos e histórias tantas vezes que parece que já estivemos lá. É um lugar triste e melancólico, sim, mas conforme os grandes vitorianos nos ensinam com tamanha sensibilidade, nenhuma vida é eximida – ou mesmo completa – sem esses sentimentos.
Tal qual a ignição de uma vela para iluminar a escuridão, A Luz que Fenece é algo simples, porém brilhante.