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A Louca do Sagrado Coração – Metralhadora crítica!

A iconoclastia de Jodorowsky e Moebius em A Louca do Sagrado Coração

Parceria das mais celebradas nos Quadrinhos mundiais, Alejandro Jodorowsky e Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, sempre buscaram a transgressão conceitual e estética. Juntos, criaram um padrão que foi inesperadamente deixado de lado na década de 1990, época da publicação original de A Louca do Sagrado Coração (La Folle du Sacré-Coeur), permanecendo inédito no Brasil até este ano. A Veneta encarou a tarefa de publicar o polêmico álbum, mas por qual o motivo um trabalho desta envergadura, de autores já bastante publicados e republicados, demorou tanto a chegar aqui?

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(Confira também a resenha de Os Olhos do Gato e Garras de Anjo)

Muito provavelmente, seu texto é o motivo principal. Disposto a demolir convenções e ícones, Jodorowsky nos mostra Alain Mangel, professor universitário de Filosofia, em meio a uma bizarra crise de meia-idade. Pode ser que alguém já tenha se lembrado de Woody Allen neste momento, o que é perfeitamente compreensível, mas essa pegada é apenas um elemento no turbilhão. Mangel segue uma linha teológica e tem seu séquito de alunos puxa-sacos, mas o jogo vira quando sua esposa pede o divórcio e evidencia sua insatisfação – sexual, sobretudo – da forma mais escandalosa possível.

No momento em que perde o prestígio entre os alunos, nosso protagonista ainda pode contar com a devoção fiel da jovem Elizabeth, mas sua motivação é um tanto difícil dele assimilar. Com Mangel, ela acredita formar uma versão moderna do casal bíblico Isabel e Zacarias, destinados a conceber um novo João Batista, fazendo parte de um novo advento messiânico no planeta. Isso envolve a participação de um São José viciado em heroína e de uma Virgem Maria que se encontra internada em uma instituição psiquiátrica.

Como se tudo isso não bastasse, Mangel ainda se debate em conflitos éticos, travando discussões internas com seu eu mais jovem, cínico e libidinoso, já que o contexto geral envolve uma dose generosa de práticas sexuais. O roteiro não entrega facilmente o que está acontecendo de verdade, mostrando eventos que podem ser interpretados como mero acaso ou intervenção divina, uma dicotomia que atormenta o pobre professor, acostumado a racionalizar tudo a ferro e fogo. São momentos que desnudam muito da hipocrisia na qual ele construiu sua vida “respeitável”.

Eis aí o grande valor de A Louca do Sagrado Coração. Nos créditos de uma carreira como a de Jodorowsky, é um trabalho que chama atenção pela sua linearidade, mas isso não é um demérito. A progressão das revelações em torno de Alain Mangel só poderia se desenrolar desta forma, permitindo ao autor atacar a arrogância acadêmica, a negação de aspectos psicológicos comuns a todos, o papel do homem moderno e muitos outros tópicos que compõem o que chamamos de “civilização”. É evidente que a religião é um dos alvos principais aqui, mas tudo está muito longe de algo classificável como panfletário, sem entregar conclusões mastigadas aos leitores.

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Quebra de ritmo

Desnecessário comentar a excelência da arte de Moebius. Com cenas compostas somente com traços limpos, o visual tem uma leveza que confere fluidez a essa leitura, mesmo nos painéis com uma quantidade maior de detalhes. No quesito da construção narrativa, tudo bastante claro e orgânico também, mas o álbum acaba sofrendo com uma abrupta mudança nesta construção, prejudicando um pouco a experiência.

Até por volta da metade, as páginas trazem poucos quadros, permitindo uma liberdade maior de traço e deixando o visual mais arejado para os leitores. É perceptível que o andamento foi interrompido e retomado em algum momento, talvez com a obrigação de concluir com um número menor de páginas. Já antes disso, a arte fica visivelmente mais carregada de preto. Ao entrar no capítulo seguinte, o estilo muda para um tom um pouco mais caricato, além de uma estrutura narrativa diferente para acomodar mais quadros.

Difícil encarar isso como uma opção artística consciente, já que destoa tanto do resto. É neste momento também que o roteiro patina um pouco, batendo na tecla da incredulidade de Mangel, característica que já não convence mais e se torna uma auto paródia. Para os que conhecem algo da pessoa de Alejandro Jodorowsky, ficará claro que o fechamento da jornada de Alain Mangel traz muito do próprio roteirista e suas convicções pessoais, o que não é um problema em si, mas parece distante da proposta acidamente cômica do início.

No fim, os prós superam os contras. A Louca do Sagrado Coração é uma daquelas obras onde você acaba lembrando de outras, mas tem sua própria voz. Ao já citado Woody Allen, podemos adicionar algo de irmãos Coen e até Monty Python para descrevê-la, mas o mais importante é que o resultado final ainda sai com o selo de qualidade de seus autores. E bem colado!

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