Minha história não é muito diferente das de outras pessoas. Eu tinha cinco anos quando minha mãe apareceu com aquela bola de pelos e eu fiquei alucinado, óbvio. A grande dúvida era se meu pai deixaria que ficássemos com ela. A resistência foi mínima, então eu tinha uma cadelinha husky. Minha mãe a batizou de Brida, pois ela ama os romances de Paulo Coelho (por favor, não a julguem…). É claro que ela se tornou minha melhor amiga, e assim foi durante os dezoito anos em que ela viveu, uma raridade em se tratando desta raça, e é evidente que meu coração ficou destroçado – como nunca antes – quando ela se foi.
Escrevi a introdução da resenha de forma tão passional por um motivo muito simples. Os leitores de O Cão que Guarda as Estrelas (Hoshi Mamoru Inu) e sua continuação, O Outro Cão que Guarda as Estrelas (Zoku Hoshi Mamoru Inu), lançados pela editora JBC entre 2014 e 2015 no Brasil, se dividem em duas categorias: os que já tiveram um amigo peludo e os que não tiveram. A história desses mangás é indubitavelmente comovente, mas – com certeza – muito mais para o primeiro grupo do que para o segundo. O autor, Takashi Murakami, um dos maiores mangakás da atualidade, fez questão de escrever para aqueles que entendem o que é contar com uma amizade tão pura quanto a de um cão.
Os dois volumes contam uma série de histórias paralelas relacionadas a essa amizade com os peludos. Cada uma trata de um determinado ponto de vista, determinadas intenções e determinados sentimentos que se desenvolvem conforme a amizade das pessoas com seus cães avança. À primeira vista, os contos aparentam ter quatro protagonistas: um homem chamado apenas de “Papai”, Okutsu, Senhora Nagano e Tetsuo. Suas histórias se cruzam de maneiras inesperadas, devido à proximidade que cada um tem com seus cãezinhos. Mas, como já observado, esses apenas aparentam ser os protagonistas, pois todas as histórias, na verdade, são narradas do ponto de vista dos próprios cães, transmitindo toda a pureza e sinceridade da sua relação com seus donos, tornando os contos ainda mais emocionantes.
A primeira história, a do “Papai”, é o conto central na qual os outros giram em torno, além de um soco na boca do estômago. A pequena Miku acha um filhote em uma caixa na rua e decide adotá-lo. Embora ela o tenha encontrado, quem acaba se aproximando do bicho é seu pai, que tem no cão uma válvula de escape para um cotidiano que ele considera extenuante. Passa todo o tempo evitando conflitos ou assuntos que considera desagradáveis, incluindo problemas na relação com a esposa e a filha. Conforme sua relação com Happy, o nome dado ao cão, se estreita, vai distanciando-se de sua família e de sua própria realidade. Quando perde sua esposa, seu emprego e seu dinheiro, “Papai” decide partir em uma aventura levando consigo apenas seu melhor amigo. No meio do trajeto, uma série de momentos belos e comoventes, como amigos feitos pelo caminho, a ajuda dada a um menino de rua, Tetsuo, e a vida no campo. A história termina na melhor tradição japonesa, de forma profundamente melancólica. É claro que “Papai” morre e deixa Happy sozinho à sua espera. Quando Happy decide não mais esperar, ele também deixa este mundo para reencontrar seu mestre no próximo. Nesse ponto, se o amigo leitor já não estiver se esvaindo em lágrimas, vá procurar um médico e pedir um coração novo, seu monstro. Sobre a morte de ambos, fique tranquilo, não se trata de um spoiler. Ela está anunciada já na primeira página, quando o carro do “Papai” é encontrado com os corpos de ambos dentro.
O segundo conto do primeiro volume, Girassóis, conta a história de Okutsu, um assistente social a quem o caso de um indigente falecido acaba sendo designado. O indigente em questão é ninguém menos que o “Papai” da primeira história. Enquanto descobre sobre a trajetória deste e o sacrifício feito para manter seu cão, começa a refletir sobre sua própria relação com o canino trazido para casa pelo seu avô durante sua infância. Okutsu, que em sua juventude era arrogante, não queria proximidade com o animal, mas ao perder o avô descobre a verdadeira amizade na relação com o cachorro. Infelizmente já é tarde e o próprio cão, que já está idoso, acaba falecendo. Em seus últimos momentos, lembra a Okutsu o verdadeiro significado da amizade, fazendo com que ele passe o resto de sua vida refletindo sobre como deveria te-lo valorizado mais enquanto ele estava por perto. Sua extensa viagem para realizar o enterro apropriado do “Papai” e de Happy é na verdade uma expiação de sua própria tristeza, além de um entendimento claro do valor do amor e da amizade de um cão ao seu dono.
No segundo volume, O Outro Cão…, temos mais dois contos. Felizmente, Murakami decidiu nos poupar e as histórias, embora também comoventes, são mais leves e menos melancólicas. Temos a história da Senhora Nagano, uma idosa ranzinza que não vê sentido nenhum na vida, por isso está decidida a se matar. Em uma ida ao mercado acaba encontrando um filhote bastante doente em uma caixa. Incidentalmente é o irmão de Happy, o cão da primeira história. Ela vê na situação do filhote moribundo uma analogia à sua própria, decidindo esperar o filhote morrer para tirar sua própria vida. O que parece ser um conto um tanto macabro acaba se tornando uma história de redenção, pois conforme o filhote vai resistindo e cresce, a senhora Nagano acaba postergando sua decisão. Quando o cão quase morre devido sua condição, ela reencontra sentido na vida ao lutar para que ele fique vivo, reencontrando também a alegria de ter amigos e pessoas que se preocupam.
No último conto conhecemos a história de ninguém menos que Tetsuo, o menino de rua da primeira história. Tirado do avô que o havia criado, por sua própria mãe, ele só conhece o abandono nas mãos dela, que o vê apenas como uma posse a ser negligenciada. Ao ser ignorado durante um longo período, o menino decide voltar sozinho para o seu avô, enfrentando fome e frio no caminho e sendo obrigado a furtar para sobreviver. Enquanto busca alternativas para prosseguir, acaba encontrando um pug, também abandonado em um pet shop durante muito tempo, vendo no animal uma oportunidade para transitar sem ser questionado. A jornada é longa e difícil. A intenção de Tetsuo era abandona-lo o quanto antes, mas o amor demonstrado pelo cãozinho torna impossível esse ato de crueldade. O pug segue Tetsuo até seu reencontro com o avô e entendemos que só foi possível persistir até ali através da presença do seu novo amigo. No epílogo do segundo volume, temos uma perspectiva geral dos protagonistas e do significado da sua amizade com os peludos.
O traço de Murakami é intencionalmente simples, usando o estilo típico dos mangás para exacerbar os sentimentos intensos dos personagens durante as histórias. O autor, que é conhecido por cunhar o termo superflat, que designa o estilo de arte japonesa que mistura elementos de arte clássica nipônica e a influência ocidental pós Segunda Guerra, utiliza muito bem esses recursos. Em muitos momentos, seu traço lembra os momentos mais simples de Ozamu Tesuka, o que não é pouca coisa. Murakami sabe dosar muito bem o uso desse estilo típico de mangá para transitar entre o comovente, que exige um realismo mais aproximado, e os breves momentos de alívio cômico, em que o desenho se torna subitamente cartunesco.
A narrativa também é intencionalmente simplista por dois motivos: primeiro, são dois volumes que trabalham com o envolvimento afetivo dos leitores, portanto, para capturar os sentimentos dos contos de forma pura, o autor não se perde em grandes reflexões, dando aos leitores apenas o necessário para se deixar envolver com a narrativa. Segundo, e um dos grandes trunfos dos volumes, as histórias são narradas do ponto de vista dos cães, que são retratados na sua forma mais pura e idealizada em relação aos seus sentimentos de amor e amizade. Torna a narrativa mais fluida, sem se estender mais do que o necessário, fazendo com que o impacto emocional das histórias seja devastador.
O tratamento dado pela editora JBC aos dois volumes também é digno de nota. Com capa e orelhas de qualidade, os dois volumes usam papel lux cream, que valorizam os desenhos de Murakami sem perder o aspecto típico de mangá, além de tornar o preço bastante acessível ao amigo leitor.
O Cão que Guarda as Estrelas é de fato uma obra para um público específico. Quem já teve um desses amigos sabe como é a vida com eles, sabe das lições que aprendemos pelo caminho e – definitivamente – só essas pessoas, como eu, conhecem a dor e a saudade que sentimos quando eles se vão. A vida que levamos nesses tempos torna quase todos nós pessoas duras, cínicas e céticas. A presença de um amigo de quatro patas nos coloca em contato com essa parte do nosso eu interior que ainda é pura, que ainda sorri e vê o valor das coisas simples da vida. Murakami conseguiu capturar com precisão esses sentimentos.
Rola um meme interessante na internet, onde uma suposta criança não se lamenta ao perder o cão. Argumenta que eles se vão tão cedo porque já nascem sabendo amar de uma maneira que nós levamos a vida inteira para aprender. O Cão que Guarda as Estrelas é tão bom que me faz acreditar no amor, na amizade e até na internet.
Nota do resenhista: Vocês não fazem ideia de como foi difícil escrever esta resenha. Espero que gostem… Ah, só como curiosidade, o mangá foi adaptado para o cinema em 2011 e o trailer você confere abaixo: