Continuando a publicação iniciada semana passada, segue a segunda parte da entrevista do roteirista, escritor e mago Alan Moore. A entrevista foi originalmente dividida em dois tópicos, indicados no início desta e da postagem anterior, porém, como esse tópico é muito maior que o primeiro, será dividido em dois. Semana que vem, a conclusão desta conversa muito esclarecedora!
II – A INTENÇÃO DO MAGO É SUPREMA
Eu tenho pensado um pouco sobre emblemas – emblemas renascentistas alquímicos mais precisamente – e como conseguiram essa mediação entre alguma ideia abstrata e o mago. E então isso me fez perceber como os quadrinhos serviram a essa função para você.
AM A mídia de quadrinhos tem algumas características incomuns que a tornam muito diferente, é a combinação de narrativa verbal com a visual que permite possibilidades muito ricas de transmitir informações. Agora, com algo assim – digo, trabalhando em Promethea – eu estava dando meu melhor para usar as possibilidades da mídia de quadrinhos e minhas próprias habilidades nela (bem como as incríveis habilidades de J.H. Williams III, Mick Gray e Jeromy Cox, que trabalharam comigo) para realmente tentar ao máximo induzir um tipo de estado mágico no leitor.
Então a produção de quadrinhos não é por definição um ato mágico. É a intenção do mago.
AM A intenção do mago é suprema.
Porque uma história como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller não é uma HQ mágica, mas Promethea é.
…é a combinação de narrativa verbal com a visual que permite possibilidades muito ricas de transmitir informações.
AM Certo, O Cavaleiro das Trevas não é uma HQ mágica, e eu diria também que provavelmente um monte do meu próprio trabalho não foi pensado magicamente, porque eu não havia mesmo pensado a respeito nesses termos até 1994. De qualquer forma, retroativamente, eu posso ver como muito dos meus primeiros trabalhos estava começando a centralizar-se ao redor de temas que se tornaram muito mais lúcidos quando eu os entendi em um contexto mágico. A sensação de atemporalidade, ou o fato de que o tempo deve ter uma natureza muito diferente daquela que percebemos, tem estado ali desde minhas primeiras histórias curtas na 2000 AD. Estava no Dr. Manhattan em Watchmen, estava com William Gull em Do Inferno, e está nesse momento à frente em Jerusalem. Então um monte dessas coisas, mesmo que não sejam especificamente mágicas, você começa a ver que, de maneira não intencional, estavam se aproximando de um território similar.
Nos últimos dez anos, mais ou menos, tem havido o que poderíamos chamar de outro renascimento do ocultismo, um interesse renovado pelas ideias esotéricas e herméticas, principalmente entre artistas e músicos.
AM Eu acho que o interesse atual no oculto e atividades mágicas entre músicos e artistas é bem-vindo de algum jeito, e de algumas maneiras talvez previsível e inevitável. Eu acho que nossa cultura foi tão longe quanto possível no sentido de não haver conteúdo ou sentido na arte, e eu acho que uma tentativa de atribuir sentido à nossa cultura e nossa arte imbuindo-a com uma sensibilidade mágica é provavelmente necessário, e como eu disse, provavelmente inevitável, certamente há muito tempo. Eu o saúdo veementemente.
Como a ideia dos emblemas ajudou a moldar ou dar mais força à sua imaginação?
AM Promethea é, desde o primeiro número, descrita como uma personagem ficcional. Existe uma estranha elipse de auto-referência acontecendo ali, porque você está lendo sobre essa personagem ficcional que está perfeitamente consciente de que é ficcional e essa é, de fato, a fonte do seu poder oculto. É mais ou menos como dizer que essa representação de Promethea que você está vendo é a verdadeira deusa Promethea. Essa é uma encarnação real da imaginação. Na verdade, em um quadro eu achei que havíamos praticamente manifestado o deus Hermes. Como um deus da linguagem e comunicação se manifestaria num universo físico? Claro, apenas uma deusa dos sonhos se manifestaria através de sonhos, então um deus da linguagem, imagens, comunicação, e, se lhe agradar, histórias em quadrinhos, provavelmente se manifestaria através de uma HQ.
E ainda assim, eu percebo que você encara a tendência de confundir deuses com super-heróis como algo um tanto artificial.
AM É artificial, porque não são a mesma coisa. Super-heróis são propriedades de grandes corporações. Eles são entidades puramente comerciais, com o propósito de fazer dinheiro. Isso não quer dizer que não tenha havido algumas criações maravilhosas durante a história do quadrinho de super-herói, mas compara-los com deuses é francamente inútil. Sim, você pode fazer comparações óbvias dizendo que o Flash da Era de Ouro se parece um pouco com Hermes, já que ele tem asas em seu elmo, ou que Gavião Negro da Era de Ouro se parece com Hórus por ter uma cabeça de gavião. Mas isto só significa que os quadrinhistas através das décadas tem buscado inspirações onde podem encontra-las. Antes de estar interessado por magia como um estilo de vida viável, eu estava certamente consciente do ocultismo e seria normal pegar nomes, conceitos ou ideias de lá.
Do estrito ponto de vista do universo DC, o verdadeiro oposto do Superman seria o Bizarro, porém, talvez o real oposto do Superman seja a sua versão do Monstro do Pântano, por ser completamente ligado à terra, quase uma entidade pagã outrora humana, em oposição a um alienígena divino que finge ser humano.
AM Quando assumi o personagem Monstro do Pântano, tentei encontrar uma maneira de remodela-lo sem mudar nada de sua continuidade estabelecida, onde eu poderia mudar o que eu via como um personagem muito limitado, para algo com muito mais potencial de histórias. Primeiro, eu estava pensando sobre as diferenças entre uma hipotética consciência vegetal e a consciência humana, e acho que bem no início, com dois ou três números, eu começava a ter a ideia de que aquilo não era mais, basicamente, um monte de musgo ambulante. Era realmente algum tipo de planta elemental, potencialmente algum tipo de deus planta.
E quanto à magia que se propõe a ter efeitos no mundo real? Eu posso ir à livraria New Age na rua onde moro, pegar um livro sobre conjuração de demônios e supostamente faze-los lavar minha roupa.
Super-heróis são propriedades de grandes corporações. Eles são entidades puramente comerciais, com o propósito de fazer dinheiro.
AM Eu não recomendaria. Tive um encontro com algo que, pelo menos assim me disse, era um demônio, e parecia rude questionar isso. Naturalmente me fez pensar : OK, o que era aquilo com que eu falava? É uma parte de mim mesmo que eu nunca havia acessado? Afirmou ser uma entidade independente? Na verdade, eu acho que isso não tem muita importância. Se algo alega ser uma entidade independente, é apenas educado trata-lo desta forma, mas isso não significa necessariamente que seja. Mas se eu tivesse que dar um palpite sobre o que é essa entidade simbólica específicamente, eu diria que representa nossos drivers *. Mas eles não são maus, são simplesmente nossos drivers, coisas que se não existissem não poderíamos funcionar. Mas se são abandonados, se não prestamos atenção, se não estiverem conscientemente direcionados, irão rodar em todo lugar e entrar em todo tipo de problemas.
*N.T.: Drivers são pequenos programas que fazem a comunicação entre o sistema operacional de sua máquina e o hardware (Fonte: Wikipedia). Embora no original a palavra apareça como “drive”, pelo contexto do exemplo parece ter havido um erro na transcrição original, daí assumimos o risco de mudar para o que pareceu mais lógico.