Inédito no Brasil, Tokyo Ghost honra o cyberpunk nos quadrinhos
Criticar a dependência de internet hoje já parece um lugar comum. Não que o assunto não deva ser debatido, mas a ficção científica já se serviu disso em inúmeras vezes. A apatia e estupidez intrínseca de quem se vicia nos feeds das redes sociais já foi retratada de várias formas. Sendo assim, por que Tokyo Ghost, de Rick Remender e Sean Gordon Murphy, se destaca?
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Mesmo que seja preciso recorrer a edições importadas (já encadernadas em dois volumes), a HQ vale o investimento dos fãs da boa ficção científica. A arte marcante de Sean Murphy (Punk Rock Jesus) e sua narrativa cinematográfica garantem muito ao leitor, mas não tem só isso. Rick Remender (Vingadores: Vingar a Terra e Vingadores: A Ira de Ultron) já provou que é um roteirista competente, mas aqui, livre de uma série de amarras, parece ter colocado algumas convicções pessoais.
Como estamos falando de uma HQ publicada pela Image, com dez números fechando uma história completa e sem as habituais pressões de Marvel ou DC, a dupla criativa se soltou e deu origem a um belíssimo trabalho cyberpunk (veja essa lista).
Após um cataclisma que transformou Los Angeles em um arquipélago, a cidade tem uma população que, em sua quase absoluta totalidade, vive conectada a uma rede mundial em nível orgânico, consumindo e dependente de toda espécie de diversão acéfala. A exceção é Debbie Decay.
Debbie acompanha Led Dent, um brutamontes cujo organismo é repleto de implantes e drogas que permitem a conexão com a rede. Isso garante que a maior parte do tempo ele esteja anestesiado e abobalhado. Embora os dois sejam identificados como algo próximo a agentes policiais, agem na prática como capangas de Flak, o magnata local, sem qualquer outra escolha. A garota sobrevive na esperança de fazer com que Led volte a ser o que era antes do vício. Aliás, a relação entre os dois é um bom exemplo do arquétipo do Master-Blaster.
Como não poderia deixar de ser nestes retratos do futuro, e já indicado no título, Tokyo Ghost tem na cultura e no visual nipônico um ponto fundamental. A capital do Japão se manteve como um reduto intocado pela tecnologia, cujo território é cobiçado por Flak. Debbie e Led, depois de capturarem o terrorista Davey Trauma para seu patrão, tem a missão de chegar a Tokyo e preparar a conquista do local. Mas ir para lá já era um sonho antigo da garota.
O recado de Rick Remender
Tokyo Ghost não decepciona quem procura doses cavalares de ação em uma história adulta. As atrocidades cometidas por Led Dent são mostradas com todo o impacto gráfico possibilitado pela arte de Murphy. Mas se é uma história com conteúdo crítico à dependência digital e reflexivo sobre nossa relação e respeito à natureza, isso não soa gratuito e, contraditoriamente, anestésico? Até poderia, mas existe algo mais a considerar.
O leitor mais sádico é contemplado e sai satisfeito, porém, a trajetória do co-protagonista vai além do mais evidente nas entrelinhas. Se pensarmos em como a era da internet transformou a dinâmica das pessoas com a arte e entre elas mesmas, não é preciso pensar muito para chegar nas discussões sobre imediatismo, efemeridade dos relacionamentos e a tal da “modernidade líquida”.
Dizer que esse contexto desumaniza as pessoas talvez seja um exagero… hoje. Se olharmos um pouco à frente, não seria muito pessimista imaginar que esse hedonismo indolente do mundo digital vai gerar indivíduos facilmente classificáveis como desumanos pelos padrões que ainda se mantém hoje. Convenhamos que vídeos comprometedores publicados na rede, com o intuito deliberado de humilhar alguém, já são um golpe e tanto em qualquer otimismo sobre as pessoas em geral.
A própria transformação de Teddy em Led tem a ver com esse tipo de constrangimento. Quando ele realmente se torna um monstro apático praticando violência extrema, é uma hipérbole com fins dramáticos para esta ficção científica. A realidade extrapolada no roteiro é óbvia quanto à presença da internet, mas também não estaria presente na jornada do personagem? Ironicamente, talvez aí esteja a grande preocupação de Rick Remender.
É uma extrapolação e tanto, mas a coisa se torna contundente em Tokyo Ghost quando imaginamos o que alguém de um passado mais distante diria se pudesse conhecer este nosso presente. Pensando nisso, não é absurdo pensar que a sensibilidade vai enfraquecer com o tempo e a empatia se tornará um artigo raro nesta escalada. Daí para um estouro de violência, é realmente um pulo.
Sobre a crítica à Era Digital, Remender não é a única estrela dos quadrinhos que tocou no assunto. Brian K. Vaughan, ao lado do desenhista Marcos Martín, já havia feito seu questionamento em The Private Eye. Um trabalho tão notável que até rendeu um artigo sobre nossa entrega voluntária a uma cultura de vigilância. É interessante que esse discurso parta de vozes tão influentes dentro da grande indústria.
Resta aos leitores pensar sobre como gostariam que fosse o futuro.