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Tex e o Spaghetti Western – Macarrão, tinta e pólvora!

Ou: Porque os italianos gostam tanto de Westerns

Seus olhos vêem os criminosos invadindo sua preciosa terra Navajo. Galopando como o próprio vento, ele emite um único aviso: “Meu nome é Tex, e eu sou o patrulheiro dessas terras. Deem meia volta, ou terão um problema de ordem permanente“. Os vilões se entreolham com um sorriso sarcástico. Estão em maior número, e por isso confiantes. Eles sacam. Mas não têm tempo de se dar conta do seu erro. Estão mortos antes de caírem no chão, alvejados por balas de uma arma que nem viram sair do coldre.

Tex Willer é um dos maiores defensores que já cavalgaram pelo velho oeste. E um dos mais duradouros. Desde 1948 na ativa, o septuagenário pistoleiro é uma verdadeira referência de um gênero que, para todos os efeitos, foi consagrado pelo cinema: o western. O personagem foi diretamente inspirado em alguns cânones do estilo, e ainda é sinônimo do que, aqui em terras de outros sertões veredas, ainda é chamado de “bangue-bangue” pelos mais velhos.

Tex Willer, no traço de Bruno Brindisi!

Não há necessidade de fazer muito suspense sobre suas origens. Tex não é duradouro porque mantém uma fiel, mas pequena base de fãs. Pelo contrário. Tex é um fenômeno de vendas. Para muitos, assim como a Turma da Mônica é sinônimo de quadrinhos brasileiros, Tex é um fenômeno dos fumetti, como são chamados os quadrinhos italianos. O que nos levanta a questão: por que um personagem de características intrinsecamente estadunidenses é tão popular na Itália? A primeira aposta do amigo leitor um pouco mais versado seria: é um subproduto do spaghetti western cinematográfico.

Mas devemos atentar novamente à data de sua criação: 1948. O spaghetti western se tornaria mundialmente famoso apenas com Sergio Leone, cuja trilogia do Homem Sem Nome teria início apenas começaria apenas 16 anos depois. Ou seja, Tex o precede em muito. Assim como, na verdade, Tex foi precedido por muita coisa. Até Aurelio Galleppini e Giovanni Bonelli sentarem para idealizar o seu lendário pistoleiro, muita coisa rolou envolvendo a atração que o gênero western exerce sobre os europeus e, principalmente, os italianos.
De onde veio a inspiração para Tex? Afinal, por que os italianos amam western? As respostas podem ser mais interessantes do que parecem.

Entre dois Oestes

Existem certas similaridades históricas e culturais que podem fazer com que tanto italianos quantos estadunidenses se sintam atraídos por esse gênero. A comparação em si existe no plano da especulação; as informações nas quais ela se baseia são de conhecimento comum. Desde a sua fundação, a partir da colonização britânica da Georgia em 1732, a 13 colônias que se tornariam os Estados Unidos compartilham uma uniformidade política, mas não uma unidade. Apesar de serem um país, suas unidades constituintes são e lutam para permanecer vastamente independentes. As unidades geopolíticas do Estados Unidos desfrutam de uma autonomia pouco vista em outros conjuntos federativos, estabelecendo e, de muitas formas, praticando sua própria cultura.

A conquista do Oeste, apesar de muito cantada, encenada e celebrada, foi um processo difícil e bastante traumático de inúmeras maneiras, pois exigia que territórios em disputa se submetessem a uma unidade nacional nem sempre bem vinda. O Oeste não foi uma terra sem lei por tanto tempo por uma escolha de seus habitantes.
As muitas forças agindo ali tornavam o ato de desenhar linhas sobre o mapa algo bastante elusivo, e que normalmente terminava de forma sangrenta. Esse barril de pólvora de características geopolíticas e culturais tão distinta culminou com a Guerra de Secessão, que foi sucedida pelo estabelecimento de uma frágil unidade – questionada por muitos, inclusive, até hoje pelos mais exaltados, conforme explicamos no nosso artigo sobre Guerra Civil da Marvel.

The Conquest of Prairie (1908), de Irving Bacon, uma clássica representação do imaginário do Velho Oeste americano.

A história dos Estados Unidos, dada sua disseminação através de meios sobreposição cultural, é bastante conhecida. O que talvez seja menos conhecida do público como um todo seja a história da Itália.
Talvez o amigo leitor acredite que eu esteja sendo sarcástico. Não estou. Apesar de o território italiano ser imensamente conhecido por ter abrigado o Império Romano, assim como por ser base do Renascimento, entre outros feitos históricos e culturais de renome, existem certas lacunas históricas gerais que parecem fugir ao grande público.

E uma delas está justamente entre os séculos XVIII e XIX – mesmo período de unificação estadunidense e avanço ao Oeste. Desde a queda do Império Romano do Ocidente, o território que compõe a Itália se tornou fragmentado. As diversas cidades-estado ali existentes passam a entrar em conflitos constantes pela hegemonia da península.
Após as Guerras Italianas (1494-1559), provocadas pela rivalidade entre a França e a Espanha, as cidades-estados perderam gradualmente sua independência e sofreram a dominação estrangeira, primeiro pela Espanha (1559-1713) e depois pela Áustria (1713-1796). Não obstante, entre 1629-1631, uma nova explosão de peste afetou cerca de 14% da população da Itália. E à medida que o Império Espanhol começou a declinar no século XVII, suas posses em Nápoles, Sicília, Sardenha e Milão também entraram em decadência. Em particular, o sul da Itália foi empobrecido, e deixou de ter relevância na corrente principal de eventos na Europa.

Quem deu o primeiro passo na mudança definitiva de rumos da Itália foi Napoleão. O norte e o centro da Itália foram invadidos e reorganizados como um novo Reino da Itália, um Estado cliente do Império Francês, enquanto a metade sul da península era administrada primeiro por José Bonaparte e depois por Joachim Murat.
O Congresso de Viena de 1814 restaurou a situação que era vigente no final do século XVIII, mas os ideais da Revolução Francesa não puderam ser erradicados, e pouco depois eles ressurgiram durante as convulsões políticas que caracterizaram a primeira parte do século XIX. E é aqui que as histórias de EUA e Itália voltam a se alinhar.

A Itália, assim como os Estados Unidos, foi unificada na marra. Ela teve seus líderes e protagonistas – Camillo Cavour e Giuseppe Garibaldi são os principais – mas seu desfecho foi bastante elusivo, e custou caro não apenas financeira e politicamente, como em termos humanos também. E mesmo assim, não seria antes da Segunda Guerra que ela teria seus contornos definitivos desenhados.

Giuseppe Garibaldi.

Exatamente por esse processo de unificação, houve a primeira grande onda de imigração italiana como a conhecemos no Brasil, e que os EUA também conhecem muito bem. Para os que lá ficaram, o cenário não era dos melhores: era um território novo, ao menos geopoliticamente, que era disputado por forças paralelas onde o Estado não tinha muita presença. Para os que vieram, toda uma vida para construir, sem a certeza de qualquer sucesso.
Um período agitado assim gera fascinação e identificação, inclusive entre artistas. Pois se os americanos eventualmente se tornaram fascinados pelas subculturas italianas, como a Máfia, que tão bem representava um período da história de seu país, os italianos se tornaram apaixonados pelo Velho Oeste provavelmente pelo mesmo motivo.

Não obstante, é necessário apontar que existe um forte semelhança na figura cultural do homem estadunidense com o homem italiano moderno – rijo, de moralidade inflexível, self-made (ou fai da te, se preferir). São os anti-heróis que se opõem ao conformismo e são anti-establishment; que tomam as “medidas necessárias” com as próprias mãos, se necessário. E, para eles, quase sempre é.

Como afirma Richard Slotkin, a imageria do western, conforme extraída da história estadunidense, adquiriu através de persistente reprodução o poder de simbolizar as ideologias dessas sociedade, assim como de dramatizar sua consciência moral. As figuras cinematográficas de mafiosos e cowboys não são tão populares à toa; americanos e italianos têm mais semelhanças do que talvez gostem de admitir historicamente.

Velho Oeste no Velho Continente

Certo, mas o que diabos tudo isso tem a ver com Tex ou os western na Europa? Bastante coisa, na verdade. Essa proximidade cultural, tal identificação involuntária e a conexão direta possibilitada pelo enorme volume de imigrantes fizeram com que estadunidenses e italianos sempre estivessem de olho no que o outro estava fazendo. Culturalmente e politicamente. Mas esse último fica para depois.

O western é essencialmente um gênero estadunidense, visto o seu tema primário, sua história e sua cultura. E exatamente por isso que o interesse das antigas tiras europeias no Velho Oeste é, de alguma forma, surpreendente. Hoje, devido ao volume de produção e sucesso de títulos como o próprio Tex e os quadrinhos Bonelli, podemos perder isso de vista, mas é um fato que se trata de um fenômeno cultural sui generis.
É um fato que os europeus se apaixonaram pelo western – sua percepção do gênero, mesmo em sua gênese, já acrescia alguma coisa em sua interpretação visto que, enquanto os americanos tendiam a apresentar uma versão mais “realista” do cenário, os europeus se inclinavam a romantizá-lo. O que é extremamente interessante, pois foi o que, posteriormente, os americanos começaram a fazer em seu cinema.

Na Europa, já em 1889, La Famille Fenouillard de Christophe, publicado na França, se apropriava dessa mitologia no que, na época, era uma “exótica” aventura no território sioux. O escritor alemão Karl May dedicou uma parte de seu trabalho no final do século XIX para aventuras situadas em território americano desbravado. E essa atração não se restringia à mídia “menores”, como se considerava o quadrinho na época. Ninguém menos do que Giacommo Puccini se apropriou de material western, no caso The Girl of the Golden West, de David Belasco, e transformou em ópera, La Fanciulla del West, que estreou no Metropolitan Opera, em 1910.

Pôster original de La Fanciulla del West!

É claro que os italianos não foram os únicos a serem afetados pelo magnetismo do western, mas nunca deixaram de ser pioneiros fora dos EUA ao retratar o tema. No caso dos quadrinhos, o que é interessante é que seu pioneirismo se confunde com os próprios estadunidenses, tão aproximadas são as datas de algumas de suas publicações.

Apesar de serem o berço do gênero western, salvo tiras independentes e charges sem narrativas, os americanos sempre disputaram cabeça-a-cabeça com os europeus pelo pioneirismo do gênero. Autores como Walter Booth com Rob the Rover (1920), Marijac com Jim Boum (1931) – este que posteriormente também seria responsável por um clássico seminal do gênero, Sitting Bull – e Reg Perrott com The Golden Arrow, que maravilhou leitores com seu magnífico traço (1937), integram uma seleta lista de autores que desafiavam os americanos pela iniciativa sobre o gênero de sua própria criação.

Óbvio que estes últimos também trabalhavam firme sobre o imaginário dos pistoleiros nos quadrinhos. Esses pistoleiros pipocaram, como muitos outros personagens, em jornais de sindicância da década de 20. Young Buffalo Bill, de Harry O´Neill, distribuído pela United Feature Syndicate a partir de 1928, é um exemplo pioneiro da forma. A partir dos anos 1930, títulos como o Red Ryder de Fred Harman serviram como base para a disseminação mais comercial do western nos quadrinhos. O primeiro título independente dos quadrinhos foi The Comics Magazine #1, da Centaur Publications, em Maio de 36.

Entre os pioneiros italianos, temos o quadrinho Kit Carson, de Rino Albertarelli e Walter Molino, em 1937, e que durante muito tempo foi uma das grande referências para muitos autores interessados no western. Curiosamente, Albertarelli e Molino escolhem como protagonista da história na Topolino n. 238 aquele que também é considerado protagonista do primeiro filme de western americano – o homônimo Kit Carson, de 1903, que por sua vez é inspirado em alguém real (embora muito mais o nome que qualquer outra coisa…).

Kit Carson, de Albertarelli.

Deixando Carson de lado, para muitos, em sua gênese, os western nos quadrinhos foram fortemente influenciados pelo sucesso no cinema. O escritor Jack Jackson corrobora com essa ideia, sugerindo que a Era de Ouro dos quadrinhos de western estenderam a tendência prévia de filmes-B de western para tramas simplistas e ação acelerada. É um fato que as narrativas de western nos quadrinhos faziam sucesso – pelo menos tanto quanto em outras mídias.

Os trabalhos desses inúmeros quadrinistas demonstraram que o Velho Oeste era um gênero rentável, durável e variável dentro dos quadrinhos, capazes de oferecer aquilo que seus leitores queriam: ação e aventura com um toque de exotismo. O que impediu esse gênero de inicialmente monopolizar a atenção do seu público-alvo é o fato de que seus pistoleiros, justamente quando ganhavam seus primeiros quadrinhos próprios, tiveram que enfrentar nas bancas um adversário à prova de balas.

Com a criação do Superman por Siegel e Shuster também no ano de 1938, os cowboys não tiveram chance. Por interessantes que fossem, suas histórias pouco podiam competir com o Homem de Aço nas bancas. Não que elas não fossem populares; é só que os super-heróis, como gênero, tomaram a atenção, as prateleiras e os centavos de seus leitores como um furacão, relegando outros quadrinhos à uma condição secundária. Talvez o amigo leitor possa argumentar que os mercados italiano e americano de quadrinhos eram completamente distintos. Pode argumentar também que, independente dos encapuzados, os western eram extremamente rentáveis nos quadrinhos.

De muitas formas, sim, mas é preciso pontuar novamente: a máquina de produção de quadrinhos americana sempre influenciou enormemente outros sítios. E, para a interpretação da história dos quadrinhos na Europa, isso importa. Produções locais tinham que dividir espaços nas publicações com personagens estadunidenses, o que, de muitas formas, limitava o desenvolvimento de características endêmicas.

De toda forma, a hegemonia dos super-heróis não duraria muito. O advento da Segunda Guerra Mundial mudou por completo o mundo – incluindo o mundo dos quadrinhos. O público demonstrava cansaço e estafa – até certa frustração com o gênero dos super-heróis, por uma série de motivos. Mas isso já foi tratado em outros momentos, e não é importante agora. O que é importante é que, após 1945, era a hora e lugar dos western brilharem. Tanto nos EUA quanto na então devastada Europa.

Novos tempos, velhas fronteiras

É um fato que os western sempre foram um gênero altamente rentável, e ferramenta de disseminação cultural estadunidense – no cinema. No geral, sua trajetória nos quadrinhos permanecia bastante elusiva. Entretanto, com o fim da Segunda Guerra e a estafa geral do público com os super-heróis, criou-se um enorme vácuo a ser preenchido por outros gêneros. Editoras como a EC Comics capricharam em títulos de terror e ficção científica, mas outros gêneros também ascendiam na mídia – entre eles, o western.

Isso não passou incólume pelos europeus. Embora estivessem caminhando para desenvolver uma independência ainda maior das publicações americanas, isso não significava que seu imaginário não pudesse inspirá-los. Imediatamente após o término da guerra, ainda em 1946, o belga Maurice De Bevere, mais conhecido como Morris, cria um dos mais emblemáticos pistoleiros do western europeu – Lucky Luke, o homem-que-atira-mais-rápido-que-a-própria-sombra. Morris, curiosamente, seria importante para a supracitada EC Comics, ao ajudar Jack Davis e Harvey Kurtzman a fundá-la.

Lucky Luke, em sua primeira aparição!

O personagem aparece pela primeira vez em Arizona 1880, que foi publicada no L’Almanach Spirou 1947, lançado em 7 de Dezembro de 1946. O nome do famoso personagem ascensorista é importante aqui – ele nos lembra da proximidade de Morris com os membros da Escola de Marcinelle. Embora não seja considerado historicamente parte dela, Morris foi muito amigo de gente como Jijé, Franquin e Will, fato que influenciou profundamente seu estilo.

E é exatamente isso que coloca Lucky Luke como um ponto fora da curva deste artigo. Embora seja imensamente popular, com álbuns bastante divertidos e tenha ajudado na consolidação do western no imaginário dos europeus, o personagem não é exatamente um grande exemplo de western, mas sim dos seus pastiches. Luke é muito mais uma paródia dos tropos do gênero do que qualquer outra coisa.

Embora, como outros quadrinhos western de sucesso, ele apresente elementos históricos e narrativos reconhecíveis, sua real natureza se revela em outros detalhes. Personagens como Rantanplan – o cachorro mais burro da Terra – e a tendência de Luke para desarmar e não matar seus adversários atentam para o fato de que Morris estava mais preocupado em brincar – e de muitas formas, tripudiar – sobre esse gênero tão caro aos americanos, e que eles acreditam defini-los tão bem, do que em reverencia-lo.

De fato, mesmo a mudança de mentalidade do período já afetava os western de outras maneiras. Em 1948, o supracitado Marijac – pseudônimo de Jacques Dumas – faz um outro acréscimo importante para a forma: Sitting Bull, um dos primeiros quadrinhos western a retratar de forma respeitosa a figura do nativo-americano. Era uma maneira de apontar para uma representação mais democrática de personagens mesmo em gêneros clássicos e considerados “sólidos” no geral.

Sitting Bull, de Marijac!

No geral. Para os italianos, isso é muito, muito diferente. E o personagem símbolo que pontua essa diferença é Tex Willer.

O cavalgar da Águia da Noite

Como afirma a pesquisadora Aline Ferreira Antunes em sua dissertação de mestrado sobre Tex: “podemos especular o quanto da própria experiência de unificação italiana, de sua moral e costumes, estão entrelaçados nos enredos e nas personalidades de Tex. Pensemos sobre o próprio retrato da formação italiana, como citamos na comparação no início do artigo, travestida no relato da construção dos EUA pela Guerra de Secessão. Ou seja, é a partir dos conflitos na Itália de 1948 que Bonelli recriou os EUA do século XIX, partindo de problemas contemporâneos (do período) que são retratados no gibi.”

Lembremos: a Itália se unificou somente na década de 1870, de maneira incompleta, conflitiva, elusiva e resistente. Somente sob o governo de Benito Mussolini é que foi firmado um acordo com o papado para a formação do Estado do Vaticano. As diferenças entre as regiões Norte e o Sul e seus regionalismos – que costumamos perceber por meio das referências aos diversos dialetos específicos – de cada localidade estão, desta forma, também presentes em Tex.

Dessa forma, quando falamos desse personagem, precisamos não apenas levar em consideração a imensa influência que os estadunidenses exerciam sobre os quadrinhos através do globo como um todo, a Itália não sendo exceção, mas também o fato de que a Bota, quando Bonelli e Galep dão vazão ao personagem em 1948, estava em um momento de encruzilhada moral e cultural. Tentando reestruturar sua própria identidade, os italianos buscavam referências, símbolos e heróis. O faroeste em guerra de Tex que Bonelli entregou a eles ecoava esses desejos.

Relembramos que o imaginário do faroeste, apesar do seu pioneirismo nos quadrinhos, é muito mais disseminado pelo cinema; o conceito e contexto não apenas histórico, mas também geográfico, se dá através dos takes de John Ford e seus compatriotas de câmera. Desde os cânions e bolas de feno até as pequenas cidades de frágil lei e territórios “virgens” esperando o desbravamento, havia uma espécie de eco refigurado daquilo que se chamou “barbarismo filosófico” de Robert E. Howard: a ausência da presença do Estado e a tentativa de sobreposição da civilização sobre a liberdade dos selvagens.

Citando novamente Antunes: “(Tex) não está dissociada de todos estes diálogos estabelecidos, e é fruto da imaginação Bonelliana e Galepiana, onde encontramos a mistura da produção cultural estadunidense, a hollywoodiana, mas pensada e elaborada na reconstrução italiana do pós-Segunda guerra mundial, pós-fascismo, pós-Mussolini.”

Gian Luigi Bonelli em seu cenário favorito.

É um grande estratagema para se criar uma metáfora da realidade, reconstruindo-a como os próprios italianos reconstruíam seu país após a Guerra, através de uma “apropriação cultural” que poderia ser apenas uma interpretação particular de um par de autores sobre uma cultura que talvez eles não compreendessem como os nativos a compreendem. Mas que se tornou muito mais do que isso a partir do momento em que identidades nacionais se miscigenaram através de um mito.

De fato, é salutar observar que a apropriação de Bonelli e Galep não deixa de passar, por si própria, por um filtro cultural. Devido ao anteriormente mencionado processo de unificação italiano, complexo e frágil, a Itália de muitas formas se tornou um grande aglomerado de comunidades que compartilham uma certa cultura, mas que possuem entre si mais diferenças do que semelhanças. Isso inclui até mesmo idiomas – é um fato conhecido que existem diversos dialetos locais na Bota, e muitos desses habitantes chegam a ter dificuldades para se compreender, tão distintas são essas falas.

Assim, quando dizemos que em Tex esses temas e balizas são afirmados, é porque são apropriados do mito fundador americano, mas deslocados para as próprias crenças e os problemas da Itália dos anos 1950 em diante. Precisamos questionar: de quais valores estamos falando? Qual é a delimitação ética e moral dessa apropriação feita por autores italianos, mas tão somente de uma região da Itália?

De fato, esse último aspecto é particularmente importante. Conforme nota Stéphane Beaujean, a retomada do faroeste não foi exclusiva dos italianos. Além dos já mencionados Lucky Luke e Sitting Bull, o quadrinho franco-belga também viu Jijé abordar o realismo em Jerry Spring, em 1954, assim como viu a dupla Charlier/Moebius trazer ao mundo o Tenente Blueberry, em 1963, apenas para citar os mais conhecidos. Mesmo na América do Sul, através da parceria Oesterheld/Pratt em Sargent Kirk, o gênero estava sendo revisitado e reescrito.

O western havia ressurgido nos quadrinhos, e estava voltando aos poucos aos holofotes no cinema, e os quadrinistas europeus seguiram essa tendência. Eles tomaram um caminho progressivamente mais pessimista, ecoando a interpretação moderna do gênero por nomes como Sam Peckinpah. As cenas de violência se tornaram mais viscerais; os autores davam estofo narrativo para as biografias de seus protagonistas, e os recursos gráficos chocavam a imaginação, criando um universo cada vez mais amplo de amargura e violência. Graças a quadrinhos como esses, o western entrou numa Era de Ouro na Europa.

Entretanto, por geniais que fossem, esses títulos eram estudos e reinterpretações do gênero. Os franco-belgas buscavam apresentar visões distintas do herói e do meio-ambiente do western, muitas vezes desconstruindo e parodiando tropos bastante caros aos estadunidenses durante o período clássico do gênero no cinema. Sua ambição, nesse sentido, estava restrita ao âmbito dos quadrinhos e, de forma geral, com o gênero enquanto conceito. Com Tex, Bonelli tinha intenções e referências bem diferentes.

Como aponta Renato Pallavicini, do Fumettologica, Bonelli e Galep não apenas se inspiravam no faroeste de John Ford – eles literalmente transpunham cenas das telas para os quadrinhos. Títulos como No Tempo das Diligências, Caravana de Bravos e Rastros de Ódio são homenageados nas páginas do italianos. O próprio Tex é a cópia escarrada da figura de Gary Cooper – embora esse nunca tenha colaborado com Ford, mas que mostra a dedicação dos autores em aproximar seu personagem do imaginário cinematográfico estadunidense.

Confira nosso Na Tela sobre No Tempo das Diligências, de John Ford!

Mas aqui, existe algo interessante a ser apontado: a reincidência da retroalimentação entre quadrinhos e cinema. Bonelli, em 1948, criou uma espécie de “meio-termo” reverente entre o cowboy clássico, mas acrescentou camadas narrativas que inspirariam o questionamento do gênero posteriormente.

Tex, conforme imaginado por Bonelli, é um fora-da-lei pouco disposto, mas com um forte senso de honra. O personagem, já em sua gênese, carrega algumas características que emulam traços super-heroicos: ele mata apenas em defesa própria e, após o arco de presentação, ele quase que imediatamente se torna um ranger, consolidando esse status – como se assumisse sua persona super-heroica.

É importante frisar que, apesar de ir contra o consenso do gênero em pistoleiros, bem, atiram, isso era uma forma de aproximar Tex desses heróis estadunidenses. É uma deliciosa ponte idiossincrática: ao estabelecer um cowboy dentro da moral dos super-heróis, o que Bonelli faz é aproximar o personagem a um gênero decadente nos final dos anos 1940 desconstruindo e acrescentando a um gênero que estava voltando à voga.

Os nativo-americanos são retratados de maneira complexa, enfatizando aspectos positivos e negativos da sua cultura. O mesmo pode ser dito das autoridades americanas, como políticos, empresários, xerifes, ou federais responsáveis pela população indígena. De fato, mesmo o exército americano entra no balaio. Durante a Guerra de Secessão, Tex luta pela União, embora seu estado natal, o Texas, fosse um símbolo e bastião dos Confederados, um posicionamento que seria absurdo na vida real, mas que demonstra a resiliência moral do personagem e seu alinhamento com perspectivas modernas da cultura e moralidade estadunidenses. E por extensão, poderíamos dizer devido ao seu sucesso, também italianas.

Ao se casar com Lilyth, uma mulher navajo, ele se torna Chefe da tribo, adquire o nome Águia da Noite e, mais importante, torna-se um defensor dos direitos nativo-americanos. Com ela, também tem um filho legítimo e assumido de duas culturas. Durão, leal, infalível com as armas, inimigo do preconceito e da discriminação, que não liga com muito afinco para regras estabelecidas, embora aplique a lei com severidade aos criminosos.

Tex e Lilyth, no traço de Fabio Civitelli!

Suas características idiossincráticas, talvez paradoxais, o tornavam de algumas formas um personagem um personagem revolucionário mas, de outras maneiras, muito relacionável. Era a ponte entre dois tempos, duas histórias. Dois mundos.

Tex contra O Homem Sem Nome

Entre 1946 e 1961, os quadrinhos de western viveram sua era de ouro, tanto nos EUA quanto na Europa. Tex capitaneou o interesse na Itália – como já apontamos, um imenso interesse. Entretanto, no início dos anos 60, algo mudou. Existem inúmeras evidências do porquê; uma súbita mudança de interesse e direção nunca acontece por motivos isolados, mas por um conjunto de fatores.

Nos EUA, embora os western apresentassem eventualmente novas ideias, no geral apresentavam uma visão romantizada do gênero e da história americana como um todo. Conforme o país imergia em sensíveis questões culturais, até uma eventual grande crise de identidade devido à Guerra do Vietnã, os cowboys pareciam anacrônicos e antiquados. De fato, um contraponto a isso é o sucesso dos heróis atômicos da Marvel, cujo marco inicial com o Quarteto Fantástico em 1961 apontava para um país preocupado não com seu passado, mas com seu futuro – um futuro que poderia ser obliterado a qualquer momento pela chuva de bombas H em construção.

Foi então que o grande cisma do gênero western aconteceu. Os americanos, em crise cultural também no cinema, ainda prenunciavam nos anos 60 o que viria a ser a chamada Nova Hollywood, lutando contra o Hays Code, que também possuia uma análogo de censura dos quadrinhos, o Comics Code. Mas não haviam chegado lá. Enquanto isso, na Europa, investia-se na vanguarda e no experimentalismo.

No pós-Guerra, nomes como Bergman, Bresson, Truffaut e Tarkovsky revolucionavam a arte. Na Itália, não era diferente. Fellini, Antonioni, Pasolini e Visconti mostravam ao mundo que a Bota tinha muito a dizer sobre a Sétima Arte. E é aqui que a influência exercida pelo western sobre os italianos, carregada e acalentada principalmente por Tex desde 1948, se revela.

Porque, embora os quadrinhos europeus como um todo ainda produzissem westerns eventuais, os italianos eram aqueles que possuíam um personagem-símbolo, líder de vendas e que não era apenas um experimento artístico, mas o retrato do zeitgeist conforme seus criadores o percebiam. Não obstante, entre todas as escolas cinematográficas, os italianos a partir dos anos 60 foram os únicos que tinham realmente algo novo para acrescentar sobre o tema (com exceção, em menor escala, dos espanhóis) – o que, devido à todos os elementos expostos aqui até agora, não pode ser considerado coincidência.

Isso porque, atrevidos e explosivos como são, os cineastas italianos não simplesmente transporiam o arquétipo de Tex para as telas. Eles reuniriam referências distintas, e usariam as telas para criar um novo modelo de cowboy. Na verdade, o plural aqui não se aplica. Pois a revolução dos pistoleiros no cinema tem nome e sobrenome – nome esse que mudaria a história do cinema e gênero western: Sergio Leone, sua Trilogia dos Dólares e, é claro, O Homem Sem Nome, cuja oposição conceitual ao cowboy-herói Tex serviria como base para uma série de revoluções.

Claro que nós também fizemos um programa sobre ela.

E aqui entraremos na história do spaghetti western no cinema. Portanto, para não cansar o amigo leitor tal qual uma cavalgada em direção ao Oeste, continuaremos na parte dois desse artigo.

Gostou do tema? Comente aí embaixo suas opiniões sobre o assunto e não deixe de compartilhar o artigo! Até a parte dois, vaqueiro!

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