O Sandman original e sua parceira
Dentro daquela lógica espertíssima de ressuscitar/reformular personagens antigos/esquecidos que caracterizou os primórdios do selo Vertigo da DC, Sandman: Teatro do Mistério (Sandman Mystery Theatre) é um dos títulos menos lembrados. Injustamente, é claro. Se você só conhecia o Sandman de Neil Gaiman, saiba que esse nome já havia sido usado por um justiceiro mascarado no comecinho dos comics, lá no período conhecido como Era de Ouro.
Criado por Gardner Fox e Bert Christman, Wesley Dodds estreia em 1939, trazendo uma carga forte dos pulps (tema de um FormigaCast) que tanto influenciaram os super-heróis. Um homem comum, armado com uma pistola de gás que obrigava os bandidos a dizerem a verdade e os colocava para dormir, protagonizando histórias detetivescas que tinham um diferencial. Dian Belmont, o par romântico, não era apenas um acessório, já que, além de saber da vida dupla de Dodds, participava ativamente destas aventuras.
Membro da Sociedade da Justiça original, não demorou muito para que uma moda editorial o pegasse de jeito. Em 1941, como um certo garoto prodígio se mostrou uma jogada lucrativa, o Sandman original, entre vários outros, ganhou seu parceiro juvenil – Sandy, sobrinho de sua amada. No ano seguinte, a versão de Joe Simon e Jack Kirby fez Dodds largar o terno, o chapéu e a máscara anti-gás por um uniforme super-heroico genérico. Claro que Dian já não tinha o mesmo destaque.
Sumido e reintroduzido no Universo DC em 1966, momento da Era de Prata, o Sandman fazia aparições ocasionais como qualquer personagem de segundo escalão e abaixo. O tempo passou, chegou a década de 1980 e tentou-se estabelecer uma mitologia do personagem que explicasse essa mudança bizarra de trajes. Sem muita consistência, é claro, mas, feita essa apresentação, podemos falar da série que realmente interessa.
Agora sim, o Teatro do Mistério
A releitura do Sandman da Era de Ouro no selo Vertigo, concebida por Matt Wagner e Guy Davis em 1993, deu as caras no Brasil não muito tempo depois. Em 1995, a Editora Abril publicava a revista Vertigo, um dos poucos acertos naquela Era das Trevas editorial pré-Panini. Logo em seu primeiro número, os leitores brasileiros puderam conhecer a série noir, mas a alegria durou pouco, já que a Abril a cancelou no #12. Pelo menos, deu tempo de perceber que Sandman: Teatro do Mistério era algo realmente especial.
Em 2014, a Panini lançou um encadernado em capa dura com o primeiro arco. Curiosamente, nenhum sinal dos seguintes até agora, o que é uma pena em se tratando de uma série que teve 70 números de vida. Com o reaparecimento do primeiro exemplar nas bancas, livrarias e Amazon da vida, este é um bom momento de reavaliação do trabalho de Wagner, talvez ofuscado pela associação do nome a Morpheus e seus irmãos, além da identificação do selo com histórias sobrenaturais naquele momento.
Sobre as questões feministas no título do artigo, um pouco mais de paciência, por favor. Antes disso, é preciso observar que Matt Wagner e Guy Davis, ambos norte-americanos, criaram uma história norte-americana por excelência, ambientada no período sórdido pós-Lei Seca e pré-Segunda Guerra. Nos quatro primeiros capítulos que compõem o encadernado, formando o arco chamado O Tarântula, somos transportados a um ambiente realista e bem construído, muito por conta de menções e passagens pontuais de personalidades da vida real, de estrelas do beisebol a mafiosos.
Não apenas isso, quando é preciso mostrar falhas de caráter e desvios de comportamento sórdidos, Wagner não se priva de evitar a inocência que algumas pessoas esperariam de uma narrativa nostálgica. O Teatro do Mistério pode ser bem chocante para algumas pessoas no decorrer das edições. O fato do Sandman ser um homem bastante comum, porém com um conhecimento bem prático para a ocupação de vigilante furtivo, é mais um ponto para o conjunto.
Finalmente, o conteúdo feminista
E já que chegamos à boa caracterização humana de Wesley Dodds, um milionário que não atraía a mulherada como um certo playboy morcego, podemos finalmente entrar no que interessa. Não fazia sentido criar toda uma nova mitologia para esta reformulação, logo, Dian Belmont também retornou. Aproveitando o destaque que a moça desfrutou na Era de Ouro, Matt Wagner fez questão de dar a ela um co-protagonismo, mas isso não se limitou a participações na luta do herói contra o mal.
Considerando apenas o arco inicial, Dian já aparece desafiando um moralismo vigente da época. Nada panfletário ou exagerado, já que a situação é bastante prosaica. Apenas uma discussão com o pai, promotor distrital que é uma espécie de Comissário Gordon do Sandman, sobre passar a noite fora com as amigas. O interesse que o misterioso e modesto Dodds desperta nela também conta para construir essa personalidade para o leitor. Já entendemos logo de cara que ela não é nem um pouco superficial, mas de uma forma bastante orgânica na trama.
O maníaco Tarântula é um sequestrador e assassino de mulheres. Uma das cativas é amiga de Dian, o que faz com que ela se envolva na investigação por conta própria. É apropriado que a vilania da história tenha seu caráter misógino, cruzando os caminhos do Sandman e Dian. Ao invés do clichê que a colocaria como vítima a ser salva no final, ela simplesmente faz sua parte na resolução do crime usando a cabeça, sem nenhuma solução mirabolante.
Ok, maravilha. O arco de estreia de Sandman: Teatro do Mistério não é perfeito, mas passou longe dos extremos das caracterizações ingênuas de personagem. Tanto masculinos, já que mesmo “mocinhos” tem traços condenáveis que são esperados de pessoas da época, quanto femininos, que evitam figuras como donzela em perigo e femme fatales unidimensionais. Dian talvez carregue mais protagonismo que nosso herói, mas sem qualquer façanha sobre-humana que custaria a simpatia do leitor.
Feitas essas considerações, existe uma pergunta pertinente nestes tempos de “representatividade” maior no entretenimento de massa. Por quais motivos ninguém comenta sobre essas caracterizações em HQ’s de mais de duas décadas atrás, no mínimo, enfatizando esses retratos da feminilidade? Sim, HQ’s no plural, pois esse não é um caso isolado. O Monstro do Pântano de Alan Moore, na década de 1980, também trazia algo desse conteúdo com a personagem Abby Arcane. Aliás, quem se lembra bem da saga Gótico Americano também sabe que a opressão às mulheres foi o tema central de um dos capítulos. E Os Invisíveis, de Grant Morrison, que, além de uma mulher presente em regime de igualdade, tinha uma personagem transexual?
(Aproveitando o assunto, ouça também o FormigaCast sobre a Invasão Britânica)
A verdadeira consciência
Isso evidencia uma preocupação genuína de algumas estrelas da indústria dos quadrinhos, sem qualquer pressão para cumprir uma agenda politicamente correta. Neste caso, não foram esforços mais sinceros e, portanto, dignos de menção? No entanto, a esmagadora maioria do público posa de engajado louvando iniciativas vazias como Jane Foster tornando-se a nova Thor, entre outras invencionices oportunistas. Essas mesmas pessoas acham que a indústria do entretenimento finalmente encara sua mea culpa, agora sim representando o feminino decentemente em suas narrativas.
Talvez isso seja explicado em uma palavra: sensacionalismo. Pegando o gancho da nova Thor, essa é uma mudança radical que gera burburinho em redes sociais, mas quão feminista ela é, na verdade? Em primeiro lugar, é muito difícil discutir um assunto como esse se a protagonista em questão é super-poderosa. O próprio cerne da história banaliza uma imposição feminina justa quando a confunde com força física, um tipo de equívoco encontrado também na série da Netflix Jessica Jones. Mas a geral, quando vê uma mulher capaz de arremessar um carro, ou algo maior, em um vilão, entende isso como uma conquista das mulheres e sai bradando na internet como se alguém tivesse descoberto a América.
Em um tempo de extremismo, como o atual, essa sutileza específica de Wagner e outros roteiristas acaba ignorada quando esses trabalhos são comentados. Por não ser material novo e, justamente, por não apelar ao exagero que comprometeria qualquer mensagem. É óbvio que esses e outros exemplos devem ser discutidos, além de comparados com o que sai hoje em dia com o rótulo de “a favor da diversidade”. Alguns podem até argumentar que essas personagens não são protagonistas, o que traz mais reflexão.
Uma história onde a mulher não é a personagem principal não é melhor nem pior por isso, mas é bom refletir se o protagonismo por si só vale mais do que uma caracterização honesta e sem preconceitos. Mesmo assim, uma narrativa que seja incontestavelmente feminista tem isso apenas como um valor a mais, não como um atestado inquestionável da qualidade do conjunto. Esse é outro ponto que seduz a grande massa, que fecha os olhos para quaisquer outros detalhes da obra em questão.
Claro que HQ’s com mulheres protagonistas é um desejo comum entre vários leitores. Procurei exemplos diferentes pelo seu teor mais sutil e por ilustrarem melhor meu ponto de vista. Mas, nesta outra via, invoco novamente Alan Moore. Comentei a dificuldade conceitual em aliar feminismo e super poderes, mas Promethea é uma exceção a essa regra e também já tem quase duas décadas de existência. Esse é mais um quadrinho esquecido quando se fala no assunto, mas apresentou uma abordagem sensível da feminilidade, cujo pano de fundo fantástico servia apenas como veículo para esse conteúdo.
Este fenômeno (ou seria patologia?) que leva as pessoas a alçarem ao status de feminista qualquer coisa, desde que tenha mulher badass superando antagonistas do sexo oposto, não se restringe aos quadrinhos, infelizmente. Já citei a série da Netflix, bastante comentada na época do lançamento, mas o cinema recente também reproduz essa fórmula, ciente deste tipo de repercussão. Se ainda não ficou claro, não estou reclamando da existência de protagonistas do sexo feminino, mas da forma como o público assimila (louva?) essas novas personagens, automaticamente conferindo um valor inexistente ao produto.
Ainda sobre a Sétima Arte, é de se pensar quantas pessoas que vomitam opiniões sobre isso na web hoje sabem o verdadeiro valor, se os conhecerem, de filmes como Thelma & Louise e O Piano, respectivamente de 1991 e 93. Coincidentemente, exemplos localizados na mesma época da nossa HQ que puxa o assunto deste artigo.
Concluindo, não adianta culpar a indústria por seu oportunismo. O problema é permitir-se levar em uma onda calculada por um departamento de marketing, repetindo verdades fabricadas e ignorando quem foi realmente ao ponto desta discussão, de uma forma ou de outra. O assunto sempre foi e continuará indispensável para o individual e o coletivo e é muito mais complexo do que querem que o público acredite. Ler ou reler Sandman: Teatro do Mistério – além dos nossos outros exemplos – com essa consciência já é um excelente começo para mudar esse paradigma.