Rosalie Lightning fala sobre a maior dor do mundo: a perda de uma filha
A morte desperta temor e fascínio no ser humano. A morte traz a consciência da finitude e, quando morre alguém próximo, ativa outros temores; como o do abandono, o da perda de partes do self e a angústia frente ao desconhecido. O autor Tom Hart, na graphic novel, Rosalie Ligtning – Memórias Gráficas, escancara a dor da perda prematura de sua filha. Páginas quase totalmente negras ajudam a projetar no leitor o vazio, o peso da dor. Na sequência, respiramos e nos divertimos com as falas de criança, “bolota de totoro”, “gatim banco”, “luazona”. Rosalie corre, ri, brinca. Alívio. Mas lá vem novamente a página negra.
Na primeira parte da obra, são destacadas as memórias dos dias felizes de Tom e Leela ao lado da filha, apesar das dificuldades financeiras. O casal de cartunistas decide deixar Nova York, “ampliar sua visão do que é a vida: ter mais espaço, ter uma trégua de tanto estímulo; ter família” (Pág. 43). Eles escolhem uma cidadezinha na Flórida, onde se conheceram. Tom fica grande parte do dia com sua filha para que Leela possa terminar o livro que está escrevendo. Uma época feliz, truncada pela morte prematura de Rosalie. A angústia, de não ter visto indícios, sinais, augúrios da sua morte – todos esses sentimentos estão impressos em cada quadro.
Um barco percorre a história. Tom, Leela e Rosalie partem juntos de Nova York: “é só embalar a filha e partir rumo ao desconhecido”. Após a sua morte: “Um homem e uma mulher à deriva num barco, a caminho de algum lugar…”. Lembrei-me da música do Chico Buarque:
[…] Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais […]
Na segunda parte, a morte de Rosalie, não tem quadros, mas buracos e frases e poucos balões. “O que você faz quando sua filha morre?” Sob o fundo negro, o traço borrado, imagens desconexas, sonhos e realidade, perguntas, confusão e angústia. A perda do sentido do mundo da vida.
Espiritualidade
O casal Hart e Leela busca na espiritualidade uma forma de alívio para o sofrimento e aceitação da morte prematura da filha. Nesse contexto delicado, a espiritualidade é vista como uma maneira de enfrentamento da perda. Rituais, compartilhados com outras pessoas, apontam o modo como a morte deve ser vista e encarada, funcionando como uma espécie de guia que ordena e dá sentido para a experiência brutal da perda.
A espiritualidade é entendida pela literatura a respeito da perda prematura de uma criança como um dos caminhos de significação mais relevantes para os pais e famílias enlutadas, porque oferece sentidos para a condição humana da finitude. Aos poucos a arte retoma seu padrão, em uma alegoria para a esperança que retornou para Tom e Leela. Na última parte da obra, o “sim”, a perda é amenizada pela aceitação do casal.
Hart fala da sua projeção em relação ao futuro promissor quando do nascimento da filha. Na perspectiva psicanalítica, os pais se preparam para a sua chegada, criam expectativas a cerca da criança e atribuem significados à experiência da parentalidade. Por meio dos filhos, os pais revivem o narcisismo perdido após a passagem da infância, e reivindicam tudo o que a vida adulta de algum modo lhes negou para seus filhos, além de ludibriar a inexorável consciência da finitude.
A morte inesperada de Rosalie é uma transgressão à ordem natural e cronológica, os mais velhos deveriam morrer primeiro. O luto é um processo que vem responder à perda do objeto amado, que mobiliza sentimentos dolorosos, desinteresse por atividades até então consideradas prazerosas -e mesmo o desejo de morrer. O vazio e o silêncio se instalam. Uma HQ tocante onde Hart trata de um tema difícil de uma forma sensível. As ilustrações e os textos nos fazem vivenciar a dor do casal e suas lembranças da filha. Hart, com a graphic novel, mostra as fases do processo do luto ao homenagear Rosalie, um relâmpago de sol.
DICA
Se vocês aceitam uma dica de leitura complementar, leiam o livro escrito por Elisabeth Kübler-Ross, Sobre a Morte e o Morrer, publicado aqui pela Editora Martins Fontes. A obra foi pioneira no tratamento do tema da morte e do luto na área médica, e, apesar de ter sido publicada em 1985, ela ainda é referência.
Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíço-americana, lutou desde a infância pela vida por ter nascido com o peso muito abaixo da média (trigêmea). Na adolescência, sofreu com os horrores da Segunda Guerra e prometeu trabalhar na Polônia e na Rússia, ajudando aqueles que estiveram em campos de concentração. Aí começava seu interesse pela morte e o morrer.
O memorialista
Tom Hart é cartunista e diretor executivo do The Sequencial Artists Worksop, uma escola e organização artística em Gainesville, Flórida. Ele é o criador da série Hutch Owen, de graphic novels e livros. Hart foi indicado ao Prêmio Eisner, por seu memorial a respeito da morte prematura de sua filha. O cartunista ensina arte sequencial na Universidade da Flórida.
TÍTULO: ROSALIE LIGHTNING: MEMÓRIAS GRÁFICAS
TÍTULO ORIGINAL: ROSALIE LIGHTNING: A GRAPHIC MEMOIR
AUTOR: TOM HART
TRADUÇÃO: ÉRICO ASSIS
EDITORA: NEMO
EDIÇÃO: 2017
ANO DA OBRA: 2015
PÁGINAS: 272