Luther Arkwright, a grande influência de uma geração brilhante
Quem acompanha há tempos os quadrinhos das grandes editoras gringas já tem isso em mente. Roteirista britânico é uma espécie de grife, quase sempre fazendo jus ao peso desta fama. Não por acaso, já dedicamos um podcast ao assunto da Invasão Britânica na DC, iniciada lá pelo meio da década de 1980. Mas muito antes desta turma começar a trabalhar para os EUA, ou mesmo de amadurecerem a escrita, um trabalho singular pegou o então estagnado mercado inglês de jeito. Essa rapaziada deve muito a Bryan Talbot e seu aventureiro interdimensional, Luther Arkwright.
Marcando de forma indelével a cabeça desta geração que viria a escrever quadrinhos do outro lado do Atlântico, o trabalho de Bryan Talbot é, infelizmente, aquele tipo de obra cult que permanece à margem do grande público. Os motivos pelos quais essa HQ seminal da cena britânica, ainda atual e perceptivelmente influente, não tem a fama que merece é um assunto para outro pôr-do-sol. Sendo assim, vamos de uma vez ao que interessa.
Bryan Talbot nasceu em 1952, em Lancashire, condado da Inglaterra. Sua carreira nos quadrinhos começa já no início da década de 1970, onde trabalhou no meio underground britânico por cerca de cinco anos, criando, roteirizando e desenhando na publicação Brainstorm Comix. Nem é preciso comentar a efervescência cultural emanada durante aquela década, graças a uma juventude louca para sair do lugar comum e chacoalhar o sistema. Embalado neste espírito, Luther Arkwright faz sua primeira aparição em 1976 na Brainstorm, com uma HQ de apenas sete páginas: The Papist Affair.
História alternativa e dimensões paralelas (simplesmente referidas como “paralelas” nas histórias de Luther). Um protagonista clara e assumidamente inspirado em Jerry Cornelius, o agente secreto dândi do genial Michael Moorcock, influência em toda trajetória do personagem, assim como o lendário desenhista norte-americano Richard Corben. Toda bagagem cultural de Bryan Talbot já se revelava ali, além de uma disposição forte para criticar a religião como instituição e a política, evidenciando sua veia anarquista.
Amadurecendo a técnica e sua criação
Dois anos depois, o personagem aparece em um crossover de quatro páginas com a série pós-apocalíptica Ogoth and Ugly Boot, de Mick Farren e Chris Welch. For a Few Gallons More (um doce para quem sacar a referência…) foi publicado na revista Moon Comics #2. Talbot roteirizou e ilustrou ao lado de Welch, imaginando-a como um prelúdio para a próxima história com Arkwright. No mesmo ano, a revista Near Myths começa a publicar em capítulos curtos As Aventuras de Luther Arkwright (The Adventures of Luther Arwright), revelando uma evolução enorme de Talbot como roteirista e artista, sem medo de explorar possibilidades textuais e visuais.
Entre interrupções com o cancelamento da Near Myths , migrando para a antologia Pssst!, a série é paralisada em 1982, sem chegar à sua metade. Somente entre 87 e 89 a história é finalmente concluída, lançada em nove edições pela Valkyrie Press, cujo sucesso gerou uma edição extra, com artigos sobre o personagem e a produção da HQ. Pouco tempo depois, o material da Valkyrie é lançado pela Dark Horse nos EUA, posteriormente republicado em dois encadernados que trouxeram prefácios de ninguém menos que Alan Moore e um dos grandes inspiradores por trás de As Aventuras de Luther Arkwright: o já citado Michael Moorcock.
Esses encadernados saíram no Brasil em 2001, pela Via Lettera, edições que vale a pena procurar no mercado de usados. Nas palavras de Warren Ellis, Luther Arkwright é “provavelmente o trabalho experimental anglófono em quadrinhos mais importante entre todos”. Fora o já citado escopo das realidades alternativas, o que a realização de Bryan Talbot tem de tão especial ? Antes de mais nada, qual é a desse protagonista e seu pano de fundo?
No meio das incontáveis paralelas, designadas por combinações numéricas, a 00.00.00 é a responsável por manter a ordem no Multiverso, desestabilizado pelos Dilaceradores, que tem em mãos um artefato lendário e apocalíptico chamado Opala Flamejante. O grupo é responsável pelas perturbações na paralela em que se passa grande parte da história, onde a Guerra Civil Inglesa se prolonga indefinidamente e Oliver Cromwell se mantém no poder.
Uma das capacidades de Luther, agente da 00.00.00, é deslocar-se pelas paralelas, já que – diferente de todo mundo – não possui versões de si mesmo em cada uma delas. Sua parceira de campo, Rose Wylde, tem outro talento útil, que é comunicar-se telepaticamente com suas outras encarnações pelo Multiverso. Parece simples explicando nesta breve sinopse. O herói e sua companheira tem que deter os terroristas que tentam levar seu niilismo às consequências mais extremas que a ficção científica pode conceber, algo que, claro, eles vão impedir no final. Ok, mas o que mais tem aí para tanta aclamação?
Em As Aventuras de Luther Arkwright, Bryan Talbot não apenas revelou-se como uma mente genial na criação de uma teia muito mais complexa que essa premissa sugere. A rica pesquisa trouxe inúmeras citações de fatos e pessoas que faz o leitor recorrer ao glossário no final de cada edição, facilitando o entendimento de certos fatos históricos e seu uso na história – como no caso do livro A Máquina Diferencial*, de William Gibson e Bruce Sterling. A comparação ganha mais propósito pela ambientação steampunk desta Inglaterra alternativa, o que mostra que Talbot também antecedeu a popularidade deste subgênero sci fi.
*(Também foi assunto neste vídeo)
Conforme já citado, o caráter crítico deste texto é facilmente percebido, mas sempre de uma forma sutil. O contraponto entre a vida sexual de Luther e o autoritarismo dos puritanos da paralela 00.72.87, além da hipocrisia de Cromwell, é um exemplo disso. Esse tipo de motivação pessoal do autor sempre rende, trazendo aquela energia que faz falta à maioria das HQ’s da grande indústria.
Imagem e texto, que vem em doses cavalares, mas sem cair na vala do descritivo redundante, inclusive, vão revelando aos poucos qual é a origem e o verdadeiro propósito do nosso protagonista. As perguntas vão amontoando-se, é verdade, mas não ficam sem respostas para quem for até o final. A torrente referencial não fica apenas em História e um toque de Kropotkin** no ar, mas também traz, entre outras coisas, arcanos do Tarô para engrossar ainda mais esse caldo complexo.
**(Piotr Kropotkin (1842-1921) – Pensador anarquista russo)
Existem ainda vários simbolismos mitológicos/religiosos na jornada do personagem principal, cuja interpretação pode variar de acordo com o que cada leitor traz consigo, mas a trajetória deste protagonista se fecha e recompensa quem aceitou embarcar nesta viagem lisérgica. E por falar em lisérgico, é hora de destacar as outras qualidades de Bryan Talbot como quadrinhista.
Traço elegante e narrativa soberba
Pela sua capacidade de mudar sua arte a cada trabalho, Talbot ganhou o apelido de “David Bowie dos quadrinhos” ao longo dos anos. Com Luther Arkwright, essa versatilidade já aparecia de forma incontestável, valorizando ainda mais o conjunto. Aqui, a variação de técnicas está dentro da mesma obra. Utilizando o alto contraste para a linha principal da história, caprichando nas texturas e no detalhamento dos cenários, os flashbacks e momentos mais “cósmicos”, na falta de um termo melhor, aparecem em tons de cinza.
É realmente algo que pede a total entrega do leitor, mas não sem sua dose de adrenalina. Os recursos narrativos do roteirista/ilustrador nos mostram mais uma vez um tipo de mágica dos quadrinhos que o cinema nunca conseguirá emular. Se já virou clichê alguém dizer que um quadrinho é “cinematográfico”, é difícil discordar que este trabalho específico já ia além disso décadas atrás. Em primeiro lugar, foram dispensados quaisquer recursos típicos das HQ’s como linhas de movimento ou balões de pensamento, que seriam descartados pela indústria dos comics anos depois. Opções ousadas naquele momento, conferindo verossimilhança a imagens que não buscavam o hiper realismo.
Pegando o gancho do próprio Alan Moore no prefácio do primeiro encadernado, que compara a narrativa visual de Bryan Talbot com os filmes de Nicolas Roeg (diretor da adaptação do livro O Homem Que Caiu na Terra) e de Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança), Luther Arkwright tem outro grande diferencial na decupagem das cenas. O autor criou sequências de puro brilhantismo, fazendo o leitor assimilar alguns trechos como câmera lenta, cuja velocidade ele controla de acordo com o que é preciso mostrar.
Nos momentos mais elaborados, alternou sequências com um resultado que deixaria muitos montadores do cinema com inveja. Entre desenhistas de gerações seguintes que trazem uma habilidade semelhante para distender o tempo, é provável que o norte-americano John Cassaday tenha Talbot como uma de suas influências. Planetary é uma das HQ’s mais recentes com esse DNA. Não por acaso, escrita por Warren Ellis.
Quando a trama de As Aventuras de Luther Arkwright se fecha, o leitor percebe duas coisas. Uma: é uma HQ perfeita e inesquecível, daquelas que temos vontade de ler uma vez por ano, pelo menos. Duas: mesmo sem a menor necessidade de uma continuação, existia uma brecha mínima para que ela acontecesse. E aconteceu mesmo.
Luther Arkwright retorna em Coração do Império
Em 1999, a Dark Horse publicou Coração do Império (Heart of Empire), ambientado vinte e três anos depois da história original. No Brasil, a Pixel publicou em 2006, dividido em dois volumes (O Legado de Luther Arkwright e A Chegada do Apocalipse), edições de ótima qualidade gráfica. Bryan Talbot encarou novamente roteiro e desenhos e o resultado é um tanto decepcionante pela expectativa criada pela anterior.
Dizer que é ruim seria injusto, mas não traz nada de ousadia ou experimentalismo narrativo. Realizado com uma arte bem menos refinada, agora colorida, os traços mais fortes e definidos tem sua personalidade e os personagens continuam expressivos. É admirável a capacidade do mesmo artista entregar algo que parece feito por outro, mas a narrativa visual também foi bastante simplificada, sem qualquer detalhe especial que justifique o comentário. É apenas correta e dá conta de um roteiro que tem suas qualidades relativas.
Novamente ambientado na paralela 00.72.87, durante o Império Britânico restaurado sob o comando da Rainha Anne, a trama é centrada na Princesa Victoria. Filha de Luther Arkwright, o qual ela nunca encontrou e é dado como morto, ela enfrenta a indiferença da mãe, amargurada pela morte de seu outro filho por terroristas puritanos. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica prepara um plano para tomar o Império para si, enviando um agente paranormal à Inglaterra.
A pegada libertária sexual e a violência se mantém, assim como o psicodelismo, ainda que sem a mesma sutileza, mas Coração do Império ganha pontos pela enxurrada de referências e pela consistência deste ambiente. A Albion concebida por Talbot passa a sensação certa de realidade. É uma pena que existam detalhes do início que não se justificam à frente, além de viradas um tanto previsíveis, mas ainda conseguimos encontrar alguns traços daquilo que fez a HQ original tão especial. Isso já basta para que a leitura valha a pena.
Luther Arkwright em outras mídias
O personagem interdimensional teve suas aventuras levadas ao mundo do RPG em Luther Arkwright: Roleplaying Across the Parallels, demonstrando que existe uma base fiel e razoável de fãs, ainda que restrita. Em 2005, As Aventuras de Luther Arkwright ganhou uma versão em áudio lançada em três CD’s, com ninguém menos que David Tennant (Doctor Who e Jessica Jones) emprestando sua voz ao protagonista.
O Cinema passou pela sua cabeça? Em 2006, houve uma tentativa de adaptação pela Benderspink, cujo histórico não animaria nenhum fã de ficção científica. Pelo nível conceitual desta HQ, as exigências de produção seriam enormes, caso realmente quisessem fazer algo decente. Como é um personagem pouco conhecido, duvido que o investimento fosse suficiente, então é melhor mesmo que não aconteça. Se você acha que estou exagerando, certamente ainda não a leu.
Precisamos falar sobre Bryan Talbot
Já foi bastante elogiado, mas é preciso enfatizar. Bryan Talbot merece muito mais fama do que realmente tem, pois seu talento, sua influência e sua importância são inversamente proporcionais ao reconhecimento do público mundial. Sua polivalência não se resume ao desenho, transitando entre temas bastante diversos também.
Entre vários trabalhos, a trama de The Tale of One Bad Rat gira em torno do abuso infantil. As quatro (até aqui) graphic novels da série Grandville o trouxeram de volta ao steampunk e História alternativa, mas em um ambiente antropomórfico. The Red Virgin and the Vision of Utopia, escrita por sua esposa Mary, é um retrato da revolucionária feminista francesa, Louise Michel. Todas obras premiadas, porém inéditas no Brasil.
Você já desconfiava que eu diria que a saga original de Luther Arkwright merece uma republicação por aqui. É verdade, mas recomendo ir atrás das edições usadas e existe muito mais de Bryan Talbot para o público brasileiro descobrir. Como nosso mercado editorial é volátil, melhor procurar os importados, desvendar essa obra riquíssima e recomendar aos amigos.
A Nona Arte agradece!