Golgo 13 é o mangá mais antigo ainda publicado – e com fôlego para mais
Mangás acabam. OK, parece redundante e inútil afirmar algo assim, mas mantenha em mente que quadrinhos possuem uma longa e sólida tradição de reciclar personagens e fazê-los permanecer na ativa – um certo kryptoniano está completando nada menos que 80 anos em 2018. E não são apenas super-heróis – pense nos quadrinhos Disney, nos faroestes de Bonelli ou até mesmo na boa e velha Turma da Mônica; todos estão aí para provar uma coisa: quadrinhos não se desapegam fácil dos habitantes das suas páginas. E é exatamente por isso que os mangás – enquanto estilo e escola – se destacam em meio aos quadrinhos. Na terra do sol nascente, uma obra da nona arte tem prazo de validade. Quase sempre. Alguns mangás heroicos, para bem ou para mal, perduram enquanto outros perecem. Na sua maior parte, são quase sempre personagens shonen, cujas características mais simplistas os tornam mais fáceis de serem continuados: só Amaterasu sabe quando Naruto e Luffy vão desistir das suas aventuras. E é isso que torna, por alguns motivos Golgo 13, do mangaka Takao Saito, um caso tão interessante.
O primeiro deles, ao contrário dos cativantes e bondosos personagens supracitados, é Duke Togo ser um homem frio e calculista e o melhor naquilo que faz; só que, tal qual o carcaju canadense, o que ele faz não é nada bonito. Golgo 13, Duke Togo, Tadashi Togo ou Togo Rodriguez (Rodorigesu, na maravilhosa niponização do nome), não importa como você o conheça; se o conhecer, ou você o está contratando ou ele será a última coisa que você irá ver. Verá se ele assim quiser, claro. Seu verdadeiro nome, idade e nacionalidade são completamente desconhecidos, embora sua aparência sugira se tratar de um japonês. “Golgo” é uma contração de Golgotá, o local onde Jesus foi crucificado. “13”, ainda que erroneamente, é um número tradicional de má sorte. Não precisa ser muito esperto para entender a mensagem que ele quer passar. Usando um rifle M16 customizado, seus serviços estão à disposição para quem puder pagá-los; naturalmente, apenas um grupo seleto de pessoas. Togo pode realizar qualquer trabalho que alguém queira, desde que nenhum dilema moral mais profundo torne a situação complexa demais para se resolver com um tiro. Afinal, ele é um profissional e está interessado em um bom dinheiro, com a consciência limpa.
O segundo motivo – aquele pelo qual esse artigo está sendo escrito – que, em 2018, Golgo 13 completa nada menos que 50 anos de idade, tendo sido publicado pela primeira vez em outubro de 1968, mantendo seu recorde como o mangá mais velho ainda em publicação. Claro, o amigo leitor pode compará-lo com personagens como Superman, mas volte dois parágrafos e lembre-se: mangás acabam; e o fato de Golgo 13 ainda ser publicado é bastante louvável. Como destacamos anteriormente, a série tem como protagonista um homem que tem uma personalidade diametralmente oposta às daqueles que povoam os mangás shonen: esqueça o otimismo descabeçado, irreverente e inabalável de Goku, Naruto ou Luffy – Golgo só quer saber da grana, o que o torna um sujeito difícil de digerir. E se ele continua firme e forte no seu título, é porque este tem algo a oferecer.
Gekiga de respeito
Nesses 50 anos de história, o cara fez muita coisa e conheceu muita gente. Matou um pouco mais do que conheceu, como seria de se esperar. Curiosamente, o envelhecimento de Togo não acompanha seu histórico narrativo, e ele esteve “presente” em alguns momentos históricos críticos; conheceu brevemente Nelson Mandela, e participou, indiretamente, da morte de Lady Di, entre outros feitos. Isso o coloca na mira não apenas de inimigos abastados e/ou cheios de recursos, mas também de grandes agências e instituições como o FBI e a Interpol. Com o perdão do trocadilho, onde há fumaça, há Golgo. Pense em uma versão japonesa de James Bond: tão charmoso quanto, mas com uma bússola moral mais… específica. É justamente para evitar que o ponteiro dessa bússola oscile muito que Golgo tem algumas regras: ele encontra seus clientes apenas uma vez; recusa contratos longos demais; contratos que envolvam questões éticas dúbias; e contratos cujas razões não estejam absolutamente claras. Essas duas últimas são uma extensão da outra, e são as mais importantes – se Golgo não souber porque ele está fazendo, então nada feito. Uma dica que o Bond poderia pegar com ele, e que evitaria pelo menos uns 10 filmes de problemas para o inglês.
E não pense que se trata de um caso relativamente isolado de um personagem desconhecido que continua vagando por aí. Sim, é um fato que Golgo 13 é pouco conhecido aqui no Brasil; com exceção dos três volumes publicados pela JBC em 2010, quase ninguém se lembra do assassino de aluguel por aqui. Podemos pontuar algumas razões para isso, afinal, as publicações continuadas de mangás demoraram para chegar e se estabelecer aqui e, quando o fizeram, se focaram principalmente em grandes sucessos shonen, como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco; na virada dos anos 1980 para os 1990, muito do imaginário comum brasileiro foi aproveitado, época em que, no auge da publicação dos “formatinhos” de super-heróis, quadrinhos ainda eram uma sub-forma de arte voltada para públicos infanto-juvenis. Isso tornava particularmente difícil a chegada e a difusão de um mangá como Golgo 13, voltado para o público adulto, um gekiga seinen.
Na verdade, não se trata apenas de qualquer gekiga, mas um dos principais responsáveis, junto com os trabalhos de Osamu Tezuka, por popularizar o gekiga no Japão, elevando-o, no fim dos anos 1960 e durante os anos 1970, a um gênero realmente lucrativo e não restrito aos circuitos de mangás alternativos e underground. Incidentalmente, o sucesso de Golgo 13 é tão assombroso – o que torna ainda mais surpreendente o fato de ainda não ter sido mais divulgado por aqui – que se trata do único mangá não-shonen na lista dos top 5 mais vendidos da história, sendo superado apenas por One Piece, Naruto e Dragon Ball, e superando Black Jack, de Tezuka; que, mesmo sendo bastante complexo, ainda é considerado um shonen. Não obstante, diferente dos mangás que compartilham o pódio com ele, Golgo 13 é brutalmente realista – Saito é obcecado por detalhes, principalmente na reconstrução de locais e equipamentos. Qualquer arma e local representado em Golgo 13 tem uma chance considerável de ser rigorosamente similar ao desenho do mangá.
O autor teve que, inclusive, organizar uma equipe de produção para manter o mangá rodando – algo considerado relativamente revolucionário na época, já que o trabalho de mangaka é tradicionalmente reconhecido e lembrado como árduo e solitário. Entre os nomes que ajudaram Saito com a série no seu início, estava ninguém menos que o lendário Kazuo Koike, de Lobo Solitário. Koike atribui a Saito muitos ensinamentos valiosos no ofício de mangaka. Coloque isso também na conta de Golgo 13.
O sucesso da série, como todo bom mangá, não iria se restringir às páginas dos quadrinhos. Golgo 13 ganhou uma cacetada de adaptações, incluindo um longa em anime (Golgo 13: The Professional, 1983); um OVA (Golgo 13: Queen Bee, 1998); uma série em anime (Golgo 13, 50 episódios, 2008-09); seis videogames; e dois filmes live-action – Golgo 13, de 1973 e Golgo 13: Assignment Kowloon, de 1977, estrelando ninguém menos do que o lendário Sonny Chiba como o assassino japonês.
Takao Saito disse que o mangá já está planejado para acabar. Quando, só ele sabe. Isso importa? Mais ou menos. Porque quanto mais sair por lá, mais vai faltar por aqui. Por outro lado, é mais de um mangá que permanece em um alto patamar mesmo depois de 50 anos de publicação, o que é mais do que muitos dos seus primos de quadrinhos ocidentais podem dizer. E, afinal, é inaceitável que vivamos em um dos maiores polos de venda de mangás e animes fora do Japão, e não tenhamos acesso a Golgo 13. Mais cedo ou mais tarde, algum editor nacional vai ter que publicar esse material. Nem que precisemos pagar Duke Togo para apontar uma arma na cabeça de alguém por aqui…