A guerra do homem comum registrada por Ernie Pike
O Dia do Jornalista é 7 de abril e não existe melhor jeito de homenagear a profissão do que falar sobre Ernie Pike. Não apenas um personagem de quadrinhos que exercia esse trabalho, ele foi criado pelo jornalista argentino Héctor Germán Oesterheld, baseado livremente em uma pessoa real. Ernest Taylor Pyle, mais conhecido como Ernie Pyle, já era um profissional respeitado na década de 1930, mas ficou famoso como correspondente nas frentes de batalha da Segunda Guerra.
Ernie Pike surgiu na Argentina em maio de 1957, escrito por Oesterheld e desenhado pelo italiano Hugo Pratt. O personagem cobriu a Segunda Guerra, a Guerra da Coréia, a Guerra do Vietnã e, brevemente, a Guerra das Malvinas. Sempre como narrador da história, sem envolver-se diretamente. Uma curiosidade: ele aparece pouco nas histórias, não mais que dois quadros, geralmente.
As histórias não recriavam batalhas reais, muito menos personagens verídicos. O foco está na tragédia do soldado anônimo e dramas mais intimistas dentro dos conflitos. A HQ, além de não mostrar as batalhas, não se ocupa dos grandes personagens, as nações em guerra. Nem sobre a ideologia embalada por um viés maniqueísta. As histórias são sobre homens comuns que perderam a razão, soldados que mataram seus compatriotas pensando ser traidores, ou que tentaram se matar para não morrer de forma violenta, entre outras histórias.
Oesterheld não teve apenas Pyle como inspiração para Ernie Pike. Stephen Crane e Leo Tolstoy, identificados pelo pacifismo, também tiveram importância nesta criação. Foi a forma que o argentino encontrou para expressar seu desgosto pessoal com a guerra. Pike, como qualquer excelente jornalista não formulava opiniões rebuscadas, mas escrevia sobre a moralidade dos soldados.
Uma segunda curiosidade é que Ernie Pike evolui ao longo das histórias, se tornando cada vez mais “poderoso”. De um correspondente de guerra, em uma narrativa em primeira pessoa, a um narrador onisciente, ciente de histórias e informações além da capacidade de um jornalista da vida real. Uma síntese metafórica do poder da informação, atingindo o maior número de pessoas cada vez mais rápido.
O criador
Se Ernie Pike é um sucesso, o mesmo pode ser dito sobre seu escritor e sua inspiração. Hector Germán Oesterheld é considerado o pioneiro dos quadrinhos argentinos modernos. Começou seu trabalho de jornalista no jornal La Prensa e depois se mudou para a editora Abril*, onde iniciou sua carreira como quadrinista. Em 1957, fundou a Editora Frontera com seu irmão, onde publicaram diversas histórias. Através delas, atacou as ditaduras militares que assolavam a Argentina desde a década de 1930. Entre 57 e 59, O Eternauta (confira este vídeo), marco dos quadrinhos argentinos, é publicado na revista semana Hora Cero.
(Fundada por Cesar Civita. A empresa homônima brasileira foi criada por seu irmão Victor, nove anos depois)
Depois da morte de Che Guevara, em 1967, Oesterheld deixou de lado a sutileza e começou a criticar mais abertamente o capitalismo, colonialismo e imperialismo. Escreveu em 1968, inclusive, uma biografia do ícone revolucionário em quadrinhos, com desenhos de Alberto e Enrique Breccia, barrada pelo poder vigente.
Com a ditadura civil-militar mantendo-se, Oesterheld e suas filhas se juntaram à guerrilha. Ele continuou escrevendo na clandestinidade, momento em que concebeu O Eternauta II, até ser descoberto e sequestrado. Dado como desaparecido no final de 1977, o ano seguinte marca seu falecimento como mais uma vítima do governo autoritário. Suas filhas e genros tiveram o mesmo destino.
A inspiração
Assim como não é possível falar sobre Ernie Pike sem falar sobre Oesterheld, também é necessário abordar Ernie Pyle. Ainda mais pelos três serem jornalistas, profissão que é a razão de ser deste texto. Pyle foi um colunista vencedor de um prêmio Pulitzer em 1944 onde escreveu sobre os soldados da infantaria norte-americana sob uma perspectiva em primeira pessoa. O próprio presidente dos EUA na época, Harry S. Truman, elogiou seu trabalho: “nenhum homem nesta guerra contou tão bem a história do soldado americano como eles gostariam que fosse contada. Ele merece a gratidão de seus compatriotas”.
Pyle se alistou na Marinha na época da Primeira Guerra, onde serviu durante três meses até o fim do conflito. Depois trabalhou como editor na Faculdade de Indiana. Faltando apenas um semestre para terminar a universidade, largou os estudos por um emprego em um jornal em LaPorte, no mesmo Estado. Três meses depois, ele se mudou para Washington e trabalhou para o The Washington Daily News.
Em 1926, largou o emprego e rodou os EUA com sua esposa, tempos depois voltando ao mesmo trabalho, onde se tornou o primeiro colunista sobre aviões dos EUA. A própria Amelia Earhart disse: “qualquer aviador que não conhece Pyle é um ninguém”. Atuando como colunista durante vários anos, entrou em depressão e resolveu alistar-se na Segunda Guerra em 1941.
Assim como o personagem que inspirou, Pyle escrevia relatos em primeira pessoa, histórias cruas sobre os soldados. Infelizmente, sua vida foi interrompida em abril de 1945, em Iejima, uma das ilhas de Okinawa. O jipe em que ele e outros soldados estavam foi atacado e ele foi atingido no rosto. Em 1983, recebeu o Coração Púrpura em cerimônia póstuma, uma honra rara para um civil.
Apesar da importância, ainda inédito no Brasil
Ernie Pike é uma parte do legado de Héctor Germán Oesterheld e Ernie Pyle, duas lendas, indiscutivelmente. Apesar da fama e reconhecimento mundial, nunca foi publicado no Brasil. Sabe-se lá por qual motivo, mas é evidente que está mais do que na hora de preencher essa lacuna editorial.