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A crise de vendas da Marvel não é só da Marvel – e não é de hoje!

A polêmica reunião da Marvel com os lojistas

Olá, amigo leitor. Você, que acompanha o mundo dos quadrinhos, a essa altura já deve estar sabendo do ocorrido nos dias 29 e 30 de Março, quando a Marvel decidiu sentar e ouvir seus principais clientes nos EUA – lojistas e revendedores. O óbvio aconteceu – os representantes da Marvel foram fuzilados com todo tipo de crítica possível e imaginável, relacionadas principalmente às baixas vendas da editora no final de 2016, quando foi deixada comendo poeira pela sua co-irmã e concorrente, DC Comics.

Mas a principal nota foi a descuidada e tosca fala do vice-presidente de vendas e marketing da Marvel, David Gabriel, que teria dito que os revendedores, lojistas e alguns leitores teriam apontado a causa das baixas vendas, e, para deixar todo mundo ainda mais alegre, esse seria ninguém menos… que o leitor. Este, aparentemente, estaria indignado com a “diversidade” recente dos personagens, e abandonando a antiga Casa das Ideias por conta da descaracterização dos seus amados personagens.

A crise das vendas da Marvel analisada em um artigo

Os amigos leitores que acompanham o trabalho do Formiga Elétrica sabem que nós procuramos sempre a imparcialidade, analisando o universo da cultura de entretenimento geral da maneira mais objetiva e intelectualmente honesta possível. Claro que nós falamos asneira e erramos com frequência – afinal, nós escolhemos nos expor, e temos plena consciência de que erramos.

Mas algumas coisas são um tanto óbvias, e são teclas nas quais nós batemos aqui a um tempo. Embora esse assunto só tenha vindo à tona nos meios especializados agora por conta desse encontro da Marvel, por aqui nós sempre fizemos questão de criticar, em toda oportunidade que já tivemos – como em cabines de filmes de super-heróis e resenhas de quadrinhos – o desastroso modelo de criação e vendas de quadrinhos hoje.

E não digo como uma maneira de enaltecer nosso trabalho – é mais como um cínico “nós avisamos”. Sempre dissemos que esse modelo é uma porcaria. E, o que é pior, como se trata da Marvel na linha de fogo, essa situação está sendo usada como uma cortina de fumaça para encobrir outros fatos importantes desse mercado. Na verdade, o livro Marvel Comics: A História Secreta já delineava por cima esse caminho, mas, afinal, o que está acontecendo?

O ascensão e queda nos anos 1990

O mercado de quadrinhos é um negócio meio “de lua” desde seus primeiros dias. Entre indas e vindas, entre coisas como a caça às bruxas deflagrada pelo livro A Sedução do Inocente – que deixou baixas inestimáveis, como EC Comics – ou o simples desapego dos leitores pela baixa qualidade do material, vez por outra esse nicho enfrenta alguma crise séria. São pelo menos três vezes em que os quadrinhos quase sumiram de vez das prateleiras, e estamos falando de um gênero (super-heróis, carro chefe dos quadrinhos) que completa apenas 80 anos em 2018 – partindo, obviamente, da Action Comics #1, de 1938, que apresentou o Superman.

Para não nos estendermos em maiores detalhes, vamos ficar apenas com a última grande crise – os anos 1990. Essa quase foi pra valer. No final daquela década, a situação de DC e Marvel eram tão precárias, que a primeira teve que receber injeções pontuais de recursos da sua proprietária maior, a Warner, evitando abrir processo de falência; enquanto a segunda teve que fazer um leilão dos direitos de seus principais personagens para o cinema – decisão essa que tem consequências até hoje.

A situação era, de fato, calamitosa. Mas o que surpreende ainda mais é quando se observam apenas os números de vendas, pois, no começo dessa mesma década, mais precisamente em 1991, uma única edição – X-Men Vol. 2 #1 – vendeu 8,186,500 cópias. Sim, amigo leitor, eu digitei corretamente. E guarde esse número, pois ele vai ser importante para fins de comparação mais para frente.

Não apenas na Marvel, mas a DC, que na época tentava desesperadamente acompanhar os passos da concorrente, soltou uma das maiores bombas de vendas da história dos quadrinhosA Morte do Superman, em 1993. Foi bastante simbólico, em vista dos tempos que se seguiriam, ver o maior dos super-heróis morrer logo nesse período.

A crise das vendas da Marvel analisada em um artigo

Phil Seuling, o criador do Mercado Direto!

Pois bem – como um mercado que chegou a vender oito milhões de um único produto em um ano quase foi a completa falência no final da mesma década?

Nos anos 1970, o conceito de mercado direto (direct market) foi criado por Phil Seuling como uma resposta ao declínio das vendas de quadrinhos nas bancas. A ideia era que lojistas especializados em quadrinhos receberiam descontos maiores sobre os quadrinhos que eles encomendam, já que a editora não correria o risco de arcar com os custos de unidades que não foram vendidas. No lugar disso, distribuidores e lojistas lidariam com esses risco, em troca de lucros maiores.

Demorou para engrenar, mas engrenou. Na década seguinte, a Marvel começaria a produzir quadrinhos exclusivos para esse mercado direto, até que, no final dessa década, esse conceito dominava entre as editoras e distribuidoras de quadrinhos. Praticamente não se encontrava HQ’s fora das hoje famigeradas comic shops.

Da metade dos anos 1980, até a metade dos 90, praticamente toda área urbana nos EUA tinham ao menos um armazém de distribuição direta local, que funcionavam não apenas como pontos de distribuição das encomendas de quadrinhos semanais, mas também como uma espécie de “super-mercado” para lojistas, onde os comerciantes poderiam comprar, encomendar e examinar produtos de antemão, com exclusividade.

Essa feira da fruta do mercado direto, aliada à imensa qualidade de alguns títulos e escritores que trabalharam no período, fizeram com que as vendas explodissem, chegando ao pico da supracitada X-Men Vol.2 #1. Mas, o amigo leitor que tem alguma noção de economia, sabe que um mercado cujos números cresciam quase em linha reta, em que os produtores não se responsabilizam por eventuais prejuízos e encalhes, só poderia dar errado. Deu. E feio.

Essa bolha explodiu na metade dos anos 90, e espirrou para todo lado. Não somente inúmeras comic shops fecharam, mas as duas maiores distribuidoras, a Diamond e a Capital City, fecharam dezenas de armazéns por todo os EUA. A coisa chegou a um tal ponto, que a Capital, em um determinado momento, impôs multas para editoras que não entregassem seus produtos nos prazos estabelecidos, além de forçar seus revendedores a estabelecer um prazo de retorno de 30 dias.

Ou seja, tudo que havia sido feito até então para melhorar o mercado de quadrinhos tinha ido ralo abaixo e, pior, agora as editoras estavam reféns das distribuidoras. A Marvel ainda chegou a meter os pés pelas mãos quando tentou vender seus quadrinhos por conta própria, mas já era tarde demais. Os quadrinhos, cerca de 20 anos atrás, estavam respirando por aparelhos, sem muita esperança.

O milagre veio de um lugar totalmente inesperado. No meio do saldão dos heróis, os X-Men, que até alguns anos antes eram o maior fenômeno dos quadrinhos, caíram na mão da FOX – e mudariam o cinema e o gênero. Bryan Singer, junto com Ian McKellen, Patrick Stewart e Hugh Jackman, são os responsáveis por trazer os super-heróis de volta a vida com X-Men (2000), dando início a uma nova era dourada para os quadrinhos… no cinema.

Essa relação, que hoje é quase simbiótica, deu fôlego aos heróis, que puderam ver, durante os anos 2000, um renascimento. Embora a sombra da década negra de 1990 tivesse ficado para trás, as coisas nunca mais – nem de perto – seriam as mesmas.

Errar é humano, insistir no erro…

O fato é que esse modelo de mercado direto, embora não seja idêntico ao que era nos anos 90, ainda é muito parecido, e as comic shops ainda são a linha de frente nas vendas de quadrinhos. O que torna até mesmo estranha a demora de uma das grandes editoras em chamar esses caras para conversar, já que são eles que, de fato, conhecem e entendem quem, quanto e o porquê de se comprar quadrinhos.

Talvez isso se explique na crença de bastidores das editoras, que se alimentou na última década, de que os quadrinhos de papel estavam com os dias contados, e que plataformas digitais eram o futuro. Bom, erraram. Só que esse erro, agora, pode estar lhes custando – porque somente agora eles decidiram sentar com esses lojistas para conversar, e aí reside um paradoxo – esses lojistas ainda são parte do problema de vendas de quadrinhos.

Imagine que você quer ir ao cinema, assistir o mais recente filme de super-herói. Você quer ver o filme de um herói meio underground, que ninguém sabe se vai dar muito certo – tipo Guardiões da Galáxia. Se o mercado de cinema de super-heróis obedecesse ao padrão dos quadrinhos, você enfrentaria alguns problemas.

A crise das vendas da Marvel analisada em um artigo

A edição que arrebentou nas vendas!

Primeiro, você não poderia ir no cinema mais perto. Você teria que ir até um cinema específico, que passa só esse tipo de filme. Mas, antes de ir nesse cinema, você teria que verificar se o tal cinema pediu uma cópia desse filme – pois, se por qualquer motivo eles acharem que não vai ter gente assistindo, eles nem vão se dar ao trabalho. E, por último, se o filme fosse um sucesso, você ainda correria o risco de pagar mais caro para ver a continuação, já que o cinema poderia lucrar em cima do preço de pôster.

Não é uma droga? Pois bem, é assim que nossos amigos gringos compram quadrinhos. Alguma dúvida de porquê tanta gente abandonou os quadrinhos nos últimos anos?

Números não mentem

E o fato é que os leitores abandonaram os quadrinhos mesmo. Claro que um hit como X-Men Vol.2 #1 acontece uma vez na vida e outra na morte – é como querer que todo filme bata Avatar na bilheteria. Mas mesmo por esses parâmetros, não existe justificativa – no início dos anos 90, a média de venda de um volume popular de quadrinhos chegava facilmente na casa do milhão de cópias. Hoje, se chega nos 100 mil, já é considerado um sucesso estrondoso. Estamos falando de uma retração de 90%, meus amigos. 90%. Qualquer mercado que tenha retraído 90% em 20 anos já deveria ter implodido.

Não implodiu porque tem a muleta do cinema. E – de forma alguma culpando as adaptações cinematográficas – isso cria um engodo. Na era das redes sociais, fãs de Marvel e de DC se debatem para ver qual editora vende mais, porque isso determina qual é a mais popular/melhor. O problema é que, quando se observam esses números, a dica que eu daria para essa galera que se arrebenta em páginas de Facebook seria essa – comprem os gibis!

O que as estatísticas de venda comprovam, quando se compara com quanto de gente fala sobre o assunto, é que a colossal maioria das pessoas que curtem os personagens simplesmente não consomem o material onde eles tem origem. E, embora o nosso modelo de distribuição e revenda seja bastante diferente do dos gringos, ele ainda sofre do mesmo mal – pessoas não compram mais quadrinhos.

E elas não compram mais quadrinhos por uma série de motivos – a “diversidade”, alegada por David Gabriel no começo do artigo, não é uma delas. Afinal, como já estabelecemos, os números de vendas vem caindo vertiginosamente desde a metade dos anos 90 – quando, desnecessário dizer, o mercado ainda era dominado, dentro e fora das páginas, por homens brancos heterossexuais. Dizer qualquer coisa relacionada a esse assunto é de um desconhecimento grosseiro da história e da realidade dos quadrinhos – uma escusa patética para disputar migalhas deixadas pelo colapso da indústria.

Durante os ano 2000, algumas tentativas foram feitas para tentar atrair novamente a atenção dos leitores para os quadrinhos, já que o interesse havia sido despertado novamente pelos colossais sucessos que foram os X-Men de Singer e o Aranha de Sam Raimi. E foi em algumas dessas tentativas que um terrível padrão surgiu, e permanece até hoje – a praga dos reboots/mega-sagas.

Claro que houve algo bom no meio do caminho, principalmente para a Marvel. Se esta não tivesse resolvido colocar suas asinhas de fora, nós jamais teríamos tido Guerra Civil, possivelmente o último grande evento bom das histórias em quadrinhos. Mas isso ensinou uma lição que a Marvel aprendeu da pior e mais perversa maneira: grandes eventos vendem, perverter o status dos nossos personagens os põe na boca do povo. Assim foi, e assim tem sido.

A crise das vendas da Marvel analisada em um artigo

Guerra Civil, uma raridade entre as mega sagas!

Do lado da DC, nada muito diferente. Para continuar acompanhando o passo da concorrência, a DC decidiu chutar o balde e apostar em remakes do seu próprio grande evento – a Crise nas Infinitas Terras. E assim começaram as Crises, 52, NOVOS 52, etc. O fato é que, no final da década passada, o leitor que comprava um quadrinho na sua comic shop não sabia se ele ia comprar o número 400 ou se a numeração havia sido zerada; não sabia se seu herói favorito havia se tornado um vilão da noite para o dia. Quando, em 2009, nós dizíamos que o futuro era incerto, não falávamos de 2010; falávamos da edição da semana seguinte.

O X (não o de X-Men, só xis mesmo) da questão

O que nos leva a conclusão desse texto. Acreditar que a crise pela qual o mercado de quadrinhos americano passa agora é algo que aconteceu do nada é de uma inocência imensurável. Essa crise existe há pelo menos duas décadas e não se restringe a uma determinada editora, mas a ambas, que se estapeiam para ver quem consegue fazer um único título vender pelo menos 100 mil cópias em um mês. Incidentalmente, ironia das ironias, na última década, o pódio sequer pertence aos super-heróis; salvo algumas exceções, já que é um mercado que flutua, o posto de quadrinho favorito da galera (o título mais estável, no caso), de uns anos para cá, é de The Walking Dead.

O que nos leva a algumas concluões simples – a crise pela qual passa o setor não tem lhufas a ver com diversidade. É o tipo de cretinice que alguém mal intencionado menciona para tentar simplificar de forma estúpida um problema que é muito mais complexo, aproveitando-se de um ensejo social agitado como o que estamos vivendo hoje. Se resta alguma dúvida no amigo leitor sobre isso, leia matéria feita pelo CBR, demonstrando que não apenas isso é uma falácia, como os títulos “de diversidade” são os que mais vendem na Marvel hoje.

A crise das vendas da Marvel analisada em um artigo

A tabelinha diz tudo!

A fala de David Gabriel, na verdade, é um velho padrão dessas editoras, que sempre usa um pequeno grupo de leitores mais agressivo para justificar as falhas nas decisões editoriais e nas estratégias de venda. É claro que se pode debater a transformação ou reinterpretação de personagens clássicos – eu sou particularmente contra a transformação brutal de personagens clássicos, e muito a favor da criação e/ou resgate de novos personagens mais representativos (como o recente e ótimo título do Pantera Negra, ou a total reformulação do Aquaman de Geoff Johns) – mas o fato é que ele, objetivamente, não explica, de forma alguma, o fracasso do mercado de quadrinhos.

Esse ponto é imensamente mais complexo, remonta a décadas, e agora se transformou em um terrível padrão de mega-sagas e reboots. Anteriormente, estratégias de longo prazo que acabaram se tornando uma muleta para manter um mínimo de interesse dos leitores, que revertem edições pontuais em sucessos que são usados como estudos de caso para justificar a perpetuação dessas estratégia. Evidente que todas essas mudanças colocam os quadrinhos novamente sob o radar – até mesmo da mídia tradicional – mas isso não se reverte em estabilidade, ou mesmo em vendas.

O fato é, caro leitor, que não adianta dizer que o fracasso da Marvel aconteceu porque Thor agora tem uma vagina, ou comemorar porque a DC está no topo da lista de vendas. O martelo do Thor já pertenceu até mesmo a um sapo e isso não mudou nada, além  das vendas que os fãs da DC estão comemorando são pífias e patéticas perto do que esse mercado já foi um dia.

Só nos resta esperar alguém usando uma capa descer dos céus para salvar os nossos heróis. Da falência.

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