A criação do Homem-Aranha é cercado de imbróglios e disputas
O Homem-Aranha é, indubitavelmente, um dos maiores símbolos da cultura pop. De uma origem que quase não aconteceu, porque o editor Martin Goodman achava que o personagem não era bom o bastante para vender, para o estrelato, sendo reconhecido em todos os cantos do mundo, o Aracnídeo favorito dos quadrinhos é incontestável quando se fala de sucesso de público.
Mas toda grande criação acaba tendo muita gente arrastada na sua rabeira. O mercado de quadrinhos é particularmente conhecido como um campo de batalha histórico, entre criadores, editoras, herdeiros, etc. É raro ver algum grande personagem, principalmente entre os encapuzados, que não esteja envolvido em algum tipo de polêmica. O Homem-Aranha não é diferente.
E claro, a razão da disputa não poderia ser mais relevante tanto quanto é bizarra: afinal, quem é o pai da criança? A história é bastante conhecida, mas vamos jogar uma luz sobre ela, aproveitando a nova (e aparentemente bem-sucedida) incursão de Peter Parker no cinema.
Round 1: Kirby e Simon
Ao menos quatro pessoas alegam ter tido um dedo na criação do Homem-Aranha (apesar de o crédito total normalmente ser dado a Stan Lee e Steve Ditko, criador também do Doutor Estranho). O lendário Jack Kirby alega ter criado o Homem-Aranha durante uma entrevista em 1982 na revista Spirit, de Will Eisner. Kirby alegou: “O Homem-Aranha não foi um produto da Marvel”. Ele prosseguiu dizendo que “a ideia já estava lá quando eu falei com Stan” no começo dos anos 60.
Em uma entrevista em 1989 para o editor do The Comics Journal e co-fundador da Fantagraphics, Gary Groth, Kirby reafirmou sua autoria do personagem: “Eu criei o Homem-Aranha. Nós decidimos entrega-lo para Ditko. Eu desenhei a primeira capa do Homem-Aranha. Eu criei o personagem. Eu criei o uniforme (…)”.
É um fato que Kirby desenhou a arte de capa na versão publicada de Amazing Fantasy #15. De fato, o historiador de quadrinhos Greg Treakston, no seu artigo “The Birth of Spider-Man” aponta que existem evidências concretas de uma história de cinco páginas, apresentando personagens como Tio Bem, Tia May e Peter em casa. O artigo ainda afirma que o “design do Homem-Aranha de Kirby era extremamente similar ao de Night Fighter (um personagem criado previamente por Kirby que – vejam só – podia andar pelas paredes) ”.
Lee admite que, quando viu o trabalho de Kirby naquelas poucas páginas, ele entendeu que o desenhista não era o cara apropriado para aquele personagem. Essa também é uma história bastante conhecida. Lee, supostamente, não queria que o Homem-Aranha se parecesse com outros heróis prévios da casa. E quando Kirby o desenhou, ele não conseguia dar o aspecto mais esguio e jovial que Lee pretendia para o personagem.
Quem também falou bastante sobre o tema, foi o longevo parceiro de Kirby e lendário quadrinista Joe Simon, conhecido por criar o Capitão América junto com o desenhista. Simon descreveu por diversas vezes, como ele criou uma versão do Homem-Aranha em 1953 (versão em que Kirby também afirmava estar envolvido) chamado Silver Spider, que possuía – veja que coisa – poderes de uma aranha humana.
Este foi eventualmente chamado de “Spiderman”, sem o hífen da atual versão consagrada (Spider-Man). O projeto nunca decolou, mas Simon chegou a criar um logo para o Spiderman e algumas propostas de roteiro junto com arte para o Silver Spider, que parecia mais uma combinação de Archie e Capitão Marvel que Peter Parker/Homem-Aranha.
Kirby e Simon criaram um herói com os poderes de uma mosca (chamado, simplesmente, de The Fly, A Mosca – não confundir com o filme). A primeira edição apresentava The Fly contra um vilão chamado Spider Spry. O miolo para essa edição apresentava The Fly preso em uma teia de aranha, com Spider Spry ameaçadoramente caminhando pela teia, provocando o herói.
É um fato que Kirby já tinha em mente a relação entre os poderes de uma aranha e um super-ser. Mas isso não é exatamente uma prova cabal, já que, durante os anos 50, o horror científico estava na moda – nos cinemas, na literatura pulp e, claro, nos quadrinhos. Evidência disso é que o supracitado A Mosca original data de 1958. Assim, ainda é elusivo dizer que a ideia foi exclusivamente de Kirby, por mais que o desenhista tenha reafirmado isso categoricamente até o fim de sua vida.
Round 2: Lee e Ditko
Ditko descarta as alegações de Kirby sobre ter criado o Homem-Aranha. Ditko argumenta que Kirby apareceu com “cinco páginas de uma história não terminada. A história, personagens, lenda, ‘ideias’ são incompletas, desconhecidas. Toda a ideia de ‘Homem-Aranha’ de Jack é inexplicável, não-existente, não-criada”. Ditko ainda afirma, também categoricamente, que a versão de Kirby para o Homem-Aranha não era a mesma versão em que Lee e ele mesmo estavam trabalhando.
A capa de Kirby para Amazing Fantasy #15 veio depois que Ditko já havia desenhado uma que não havia sido usada e depois que a história já havia sido escrita: “O Homem-Aranha tinha um uniforme na história, aquele mesmo uniforme com o padrão de teias que eu trouxe ao mundo. Então, eu sou o criador dele, e o uniforme publicado do Homem-Aranha é minha criação”. De todas as pessoas que afirmam ter criado o Homem-Aranha, Ditko é um dos que se sentem mais ofendidos pelas declarações de Kirby – e talvez não sem razão.
Stan Lee, da sua parte, sempre disse que sua maior inspiração para o Homem-Aranha foi o velho herói da literatura pulp (que você pode conhecer melhor no nosso podcast), The Spider (o Aranha ou Aranha Negra por aqui). Em uma entrevista com Tom DeFalco, Lee afirma nunca ter tido problemas em dividir os créditos com Ditko, chamando a si mesmo e a ele como “co-criadores”. Mais adiante, Lee ainda amplia essa declaração, dizendo: “Mesmo que o Homem-Aranha tenha sido minha ideia (…) ele precisava de Steve (Ditko) para transforma-lo de uma mera ideia em arte no papel. Steve teve que desenvolver o visual do personagem”.
Conforme o Homem-Aranha seguiu em frente e ganhou o público, Ditko ganhou maior controle sobre as histórias do personagem. Lee já admitia isso desde 1966: “Eu não tramo mais o Homem-Aranha. O artista Steve Ditko tem escrito as histórias recentemente. Eu acho que vou deixa-lo sozinho até as vendas começarem a cair. (…) Nós temos discutido demais sobre as histórias, e eu disse para criar as suas próprias (…)”. Não obstante, a controvérsia em torno do Homem-Aranha, assim como o rumo desgostoso de outras criações de Ditko para a Casa das Ideias fizeram com que, poucos anos depois, o desenhista deixasse a empresa.
Talvez não importe realmente quem de fato criou o Homem-Aranha. Pode-se argumentar que todos os quatro tiveram sua parte na criação. Hoje, o personagem – como é uma regra com super-heróis nas histórias em quadrinhos – já passou por tantas reviravoltas, e tantas mãos o escrevendo e desenhando, que essa discussão parece até um pouco mesquinha. Mas também é um fato que, sendo parte da história das HQ’s, às vezes vale a pena a gente refrescar a memória e dar os devidos créditos a quem merece. Mesmo que nós não saibamos quem são essas pessoas.
O Homem-Aranha permanece como um dos super-heróis mais populares do mundo moderno. Ele está sempre na crista da onda, se adaptando a tendências e mudanças – às vezes para bem, às vezes para mal. Conforme as tecnologias avançaram de 62 para cá, o herói se tornou onipresente, chegando aos cinemas, games, brinquedos, animações e todo tipo de produto de merchandising que se pode imaginar. Mas sua essência e – principalmente – seu sucesso permanecem os mesmos.
Como diz o historiador Theakston: “O Homem-Aranha foi moldado por muitas mãos durante os anos. Nenhum homem pode alegar te-lo criado sozinho, mas todos podem compartilhar a sua glória”.
Este artigo faz parte do nosso Especial Homem-Aranha! Dê uma conferida no nossa Na Tela, com os momentos mais marcantes do personagem nos quadrinhos; nosso Na Cabine, com as primeiras impressões do filme Homem-Aranha: De Volta ao Lar; nossa crítica do filme; um ranking com os 10 melhores vilões do personagem; e um ranking com as aparições do aracnídeo no cinema!