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Charlie Brown e Peanuts – o Setembro Amarelo com um ziguezague preto!

O que Charlie Brown, Snoopy e as crianças de Peanuts nos dizem sobre depressão, ansiedade e afins?

“Não há nada engraçado em ser feliz”, disse Charles M. Schulz, criador de Charlie Brown, Snoopy e seus amigos. Isso não surpreende os fãs das tirinhas e animações de Peanuts. Mas o teor depressivo da obra de Schulz costuma passar batido por quem só conhece Snoopy de capas de fichário e merchandising afins.

charlie brown

Afinal, o beagle que menos lembra um beagle de verdade aparece sempre sorrindo, no auge de sua fofura. Já seu dono, Charlie Brown, tende ao oposto, com suas reflexões e melancolias. E mesmo às demais crianças da vizinhança não faltam manias e neuroses.

Com a campanha Setembro Amarelo acontecendo outra vez, temos mais uma desculpa para revisitar Minduim e sua turma. Será que a obra de Schulz, iniciada em 1950, permanece relevante em uma conversa sobre transtornos tão contemporâneos como depressão e ansiedade?

É o Setembro Amarelo, Charlie Brown

Promovida no Brasil desde 2015, a campanha Setembro Amarelo foi encabeçada pelo Conselho Federal de Medicina, pela Associação Brasileira de Psiquiatria e pelo Centro de Valorização da Vida. Sua finalidade maior: a prevenção do suicídio.

Podemos logo admitir que o universo de Peanuts não traz para si a questão do drástico suicídio. Ainda assim, lá estão sensações intimamente relacionadas: não pertencimento, impotência, baixa autoestima, frustração. Charlie Brown não chega a ser autodestrutivo, mas é inegavelmente um deprimido.

charlie brown
“Esta é minha postura deprimida. Quando você está deprimido, faz muita diferença que postura você adota. A pior coisa que você pode fazer é se endireitar e manter a cabeça erguida, pois aí você começa a se sentir melhor. Se você quiser extrair qualquer alegria dessa depressão, sua postura tem que ser esta.”

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“Você parece meio deprimido, Charlie Brown.”
“Eu me preocupo demais com a escola… Eu também me preocupo com me preocupar tanto assim com a escola… Minhas ansiedades têm ansiedades.”

Afinal, seu bordão original é “good grief“. No Brasil, o conhecemos por “que puxa” ou “que lástima”. A essência foi até que preservada na difícil tradução, mas perdemos o oximoro que, literalmente, quer dizer “bom pesar”. Um lema que define a consciência de Charlie sobre o peso de suas aflições.

Essa noção o leva a procurar ajuda, e é aí que a situação fica mais curiosa, pois sua terapeuta não é uma pessoa exatamente empática.

Lucy, a psiquiatra

Enquanto muitas crianças gringas montam sua barraca de limonada para juntar um dinheiro, Lucy van Pelt se denomina doutora e cobra por atendimento psiquiátrico.

É raro que os conselhos de Lucy ajudem de verdade. Nas sessões, ela mantém sua postura habitual, debochada e brutalmente honesta. Ainda assim, Charlie persiste em se consultar com ela – a mesma pessoa que o chama de tapado e sempre puxa a bola que ele vinha correndo para chutar.

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“Tenho profundos sentimentos de depressão. O que posso fazer a respeito?”
“Sai dessa! Cinco centavos, por favor.”

Estaria Schulz comentando os profissionais que atendem depressivos, ansiosos, fóbicos e afins? Fazendo uma caricatura da certa distância que suas funções exigem, mesmo diante de pesares tão humanos?

Talvez o cartunista só quisesse experimentar o inusitado da situação: seu personagem mais deprimido fazendo terapia com sua personagem mais ácida. E podemos rir por várias razões: pelo próprio exagero da coisa; pelo azar do ingênuo Charlie; pela inaptidão de Lucy… Quem sabe por nos reconhecermos ali, em algum dos papéis daquela problemática relação? Entre quem precisa desesperadamente desabafar e quem não paciência alguma de ouvir?

Nesse e em tantos outros cenários, os personagens de Peanuts nos aproximam e nos afastam em medidas que pedem mais atenção.

Equilibrando os alcances

Essas crianças não passam de uns oito anos de idade e vivem em um mundo onde a voz dos adultos não faz a menor diferença: nas tirinhas, eles nunca têm falas; nos desenhos, soam como um icônico “blá blá blá”.

Um dos grandes ícones dos episódios animados é justamente a fala incompreensível dos adultos – fruto de um trompete e de sonoplastas engenhosos. Assista à cena e veja se reconhece o efeito. 

Com os adultos de lado, então, a turma experimenta e condensa tanto o divertido universo infantil quanto as tensões que só gente madura conseguiria delinear bem. É no cenário da descontraída partida de beisebol que Charlie se frustra por não ter o respeito de sua equipe. É durante a clássica brincadeira de Halloween que Linus insiste em esperar pela Grande Abóbora em vão, perdendo a noite de doces e virando motivo de chacota. É pulando corda que Sally tem um acesso de raiva contra tudo e todos.

Como se o jogo infantil/adulto não bastasse, há Snoopy. Patty Pimentinha o confunde com um menino de nariz engraçado e não é por acaso, já que o cachorro participa das mesmas atividades que as crianças. E vai além.

Snoopy é preguiçoso e folgado na cara larga, às custas de seu dono. É despreocupado, encarnando o alter ego Joe Cool e frequentando a escola somente para ser popular. É o mais inventivo e seguro dos personagens. Mas não é um ser humano de fato, certo?

E quando você já estava encantado com a imaginação de um cachorro que fantasia ser um ás da Primeira Guerra Mundial em cima de sua casinha… Schulz traz para a narrativa transtornos, desilusões amorosas e até câncer infantil (sim, a animação Why, Charlie Brown, Why? é exatamente sobre isso). Suas histórias são montanhas-russas que passeiam entre o pueril e o adulto; a brincadeira e a crise; o fofo e o devastador.

Não é tanto o caso de The Peanuts Movie, lançado no Brasil com o colossal nome de Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, o filme. O longa de 2015 (que o Formiga Elétrica resenhou aqui) pega bastante leve no quesito depressão. Seu enredo valoriza o espírito perseverante de Charlie Brown, diminuindo um tanto a gravidade de seus problemas e da eventual rejeição que sofre. O menino ganha até uma redentora validação da sonhada Garotinha Ruiva – coisa que já havia acontecido nas animações, mas nunca de forma tão linear.

Apesar desses atenuantes, que os fãs de longa data percebem fácil, o longa conseguiu estabelecer a essência de Peanuts para uma nova geração. O respeito do Blue Sky Studios pelo material original rendeu uma identidade visual belíssima. Além disso, o roteiro passou simplesmente por Craig e Bryan Schulz, filho e neto de vocês sabem quem. Os dois se incumbiram de manter o material fiel ao que o pai/avô produzia – e produzia com um apego tão peculiar que até explica as manias de seus personagens.

Um autor ciumento

Charles M. Schulz era muito zeloso quanto a sua criação. Produziu suas tirinhas religiosamente por cinco décadas, dispensando a ajuda de outros artistas. E quando sua obra estava para ser transformada em animação por toda uma equipe, fez questão de ter a palavra final sobre muita coisa. Não era, dizem, uma pessoa fácil de se lidar.

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Schulz exibe seu traço característico.

Reparem que o próprio nome Peanuts foi dispensado nos desenhos animados da turma (à exceção do longa mais recente). Isso porque o autor sempre detestou o título: uma gíria da época para se referir a crianças, que a distribuidora de suas tirinhas insistiu em adotar. Schulz preferia dizer às pessoas que desenhava “as tirinhas do Charlie Brown e do Snoopy” e afirmou abertamente que Peanuts era um nome idiota e sem sentido.

A primeira animação da turma foi A Charlie Brown Christmas (O Natal do Charlie Brown), de 1965. Para ela, Schulz fez demandas que muitos estúdios não teriam engolido. É o caso da cena em que Linus recita um trecho do Evangelho de Lucas, sobre o nascimento de Jesus Cristo. O produtor Lee Mendelson e o diretor Bill Melendez relutaram sobre o comentário religioso, mas Schulz insistiu que aquele era o verdadeiro sentido do Natal e que deveria estar ali.

Mais memorável ainda foi sua exigência de que os desenhos não deveriam ter claque – as famosas risadas gravadas que dizem ao público de um programa quando rir junto. O recurso clássico dos sitcoms costumava ser usado em desenhos animados também, mas Schulz fez questão de derrubá-lo.

Sem a tal claque, com trilha sonora de jazz, dublado por crianças de verdade e emulando a simplicidade das tirinhas, a animação seria um fracasso, segundo sua própria produtora. Mas as orientações de Schulz prevaleceram, e assim nasceu um clássico – obrigatório na grade do canal ABC, todo fim de ano, até hoje. O cartunista estava certo, afinal. As demais animações seguiriam sua fórmula sem medo.

O misto de critério e teimosia de Schulz moldaria o universo de Peanuts décadas afora, até o final de 1999, com o diagnóstico de seu câncer. O autor logo previu que seu trabalho, produzido com uma boa antecedência, viveria mais do que ele próprio. E assim foi: ele veio a falecer durante o sono, em casa, a 12 de fevereiro de 2000. A última tirinha, que já trazia um tocante adeus aos leitores, seria publicada justo no dia seguinte.

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A última tirinha de Peanuts.

Eis uma tradução livre da despedida – melhor lida com uma caixinha de lenços por perto.

Caros amigos,
Tive a felicidade de desenhar Charlie Brown e seus amigos por quase 50 anos. Foi a realização da ambição de minha infância.
Infelizmente, não consigo mais manter o cronograma exigido por uma publicação diária de tirinhas. Minha família não deseja que Peanuts seja continuado por ninguém mais, portanto estou anunciando minha aposentadoria.
Ao longo desses anos, fui grato pela lealdade de nossos editores e pelos maravilhosos apoio e amor que os fãs da tirinha expressaram a mim.
Charlie Brown, Snoopy, Linus, Lucy… como poderia esquecê-los…

Um desfecho bonito e triste feito as próprias criações de Schulz.

Felicidade é…

Não existe uma fórmula no combate a depressão, ansiedade ou tendências suicidas. Nada disso é tão fácil que baste estufar o peito e conclamar: “sejamos como Charlie Brown, que nunca desiste de tentar chutar aquela bola de futebol americano”. Quem sofre de algum transtorno sabe bem disso. A luta é diária e altamente pessoal.

O que talvez valha observar é que no mundo de Peanuts as manias e as neuroses são abraçadas, não guardadas na gaveta, e ninguém está completamente a salvo delas. Ainda assim, nada disso ofusca o carisma e o charme desses personagens – que podem nos dizer muito sobre a essência humana e, ao mesmo tempo, aparecer sorridentes em lancheiras e estojos.

Quando eles se apoiam sobre uma mureta para conversar, pode ser sobre beisebol, filosofia, dever de casa, inseguranças, acampamento, medo de não ser querido, dar de comer ao cachorro. E assim somos todos nós: múltiplos. Apesar da sensação urgente que uma neurose pode impor – com aquela voz interna que apaga todo o resto e nos fala de fracasso, estorvo, medo e fuga –, não é isso que nos define.

Não por acaso, várias tirinhas e livros inteiros de Peanuts se dedicam a definir o que é felicidade – sob o título “Happiness is…”. Também isso é múltiplo: o que nos alegra; o que tem o poder de atenuar as tensões, por mais boba que a atividade pareça.

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“Felicidade é uma pilha de revistinhas”

Para Schulz, felicidade era produzir Peanuts à sua maneira. Talvez todos possamos ter nosso próprio equivalente disso. Algo para realizar com paixão e em absoluta lealdade a nós mesmos, por mais que nem todo mundo entenda bem algumas dessas escolhas.

Em todo caso, no aperto em tempos difíceis, não se esqueça: há especialistas que sabem exatamente como ajudar em crises assim. O CVV faz um trabalho fantástico, e oferece apoio gratuito 24 horas por dia pelo telefone 141 ou pelo site www.cvv.org.br. Seja para você mesmo ou para alguém querido que precise, anote aí.

Afinal, é como diz um dos livros de Peanuts: “Você não está sozinho, Charlie Brown.”

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