O lançamento de As Tartarugas Ninja (Jonathan Liebesman, 2014) marca o trigésimo aniversário do quarteto de répteis que se tornaram ícones da cultura pop de uma geração. Não deixa de ser curioso que as aventuras de quatro tartarugas humanoides, com habilidades marciais e nomes de pintores renascentistas, treinadas por um rato gigante na luta contra um samurai maligno em plena cidade Nova York, possa ter feito tanto sucesso e ainda render mais um filme de orçamento milionário produzido pela grife dos blockbusters hollywoodianos, Michael Bay. A graça e a razão dessa popularidade e sobrevivência dos heróis está justamente no contexto em que a criação se desenvolveu.
Leonardo, Donatello, Rafael e Michelangelo nasceram da parceria entre os dois cartunistas nerds falidos, Kevin Eastman e Peter Laird. No auge da popularidade da Marvel, no início da década de 1980, período em que o cenário político e cultural do planeta favorecia a efervescência de super-heróis, os dois amigos se afligiam por não conseguir fazer parte desse mundo fantástico e, claro, tirar o sonhado quinhão. Em um cenário que o personagem, para ter sucesso, parecia, obrigatoriamente, precisar dos poderes mutantes e personalidades angustiadas dos X-Men, a jovialidade e características um tanto bizarras de Homem-Aranha e seus inimigos ou a superação e urbanidade das batalhas do Demolidor, nada parecia soar criativo o bastante para conquistar o seu espaço. Nada que não tivesse o dedo de Stan Lee, pelo menos. O universo dos quadrinhos parecia sufocado, prestes a implodir devido a sua aparente incapacidade de renovação.
Como um protesto pessoal, os dois amigos resolvem mesclar os atributos mais inusitados dos ícones pop da época, colocá-los sob uma lente de aumento e criar os seus próprios anti-Marvel. Aranhas radioativas? Não! Tartarugas radioativas, ou melhor, sob lixo tóxico ou – melhor ainda -um agente mutagênico de um projeto secreto do governo. Mutantes como os X-Men? Mais ou menos. Sim, mutantes, mas algo como os X-Turtles com seu próprio Professor Xavier, um rato antropomórfico de sabedoria ímpar. Nova York? Sim, Nova York! Pronto, somam-se a maestria nas artes-marciais, armas individualizadas e o toque final, nomes totalmente alheios àquele universo. Estavam criadas as Teenage Mutant Ninja Turtles, filhas de um ambiente que esmagava as mentes criativas que não se adequavam a ele.
Nos primeiros anos de vida, as Tartarugas Ninja foram um misto de protesto e homenagem ao universo Marvel, tão amado por Eastman e Laird, mas ambos excluídos dele. Referências às criações de Stan Lee recheavam as histórias. Era impossível não associar os saltos e batalhas na Nova York contemporânea com as aventuras do Quarteto Fantástico, do Homem-Aranha ou do Demolidor. Este último, por sinal, era o alvo preferido das “homenagens” dos dois cartunistas. Se Matt Murdock ganhou suas habilidades por meio dos produtos químicos que caem sobre ele após um acidente com um caminhão na rua, os quelônios anabolizados surgem quando entram em contato uma substância secreta, após o aquário do garoto que as carregava quebrar-se no choque com o recipiente, derrubando-as no esgoto. Existe aí uma referência mais direta, pois o material radioativo que cai do caminhão atinge antes o rosto de um jovem, que salvava um cego do atropelamento, tal qual a propriedade da Marvel. Mestre Splinter, mentor dos repteis, é um paralelo à Stick, personagem responsável pelo treinamento do jovem Murdock, incorporado à mitologia do Demolidor por Frank Miller. O Foot Clan, a mega gangue liderada pelo Destruidor, é quase um a piada com o clã ninja The Hand (O Tentáculo, no Brasil), grupo vilão nas histórias do herói cego. A profusão de ninjas e o traço também são facilmente relacionáveis a Miller.
Feitas para durar apenas uma revista, paga do próprio bolso dos criadores – publicada pela Mirage Studios – as tartarugas fizeram sucesso imediato. Novas edições foram surgindo a medida que a demanda crescia. Os heróis também foram se adaptando conforme a necessidade. Do tom agressivo e antissocial dos primeiros números, passaram a prosaicos e boas-praças. Os quadrinhos sombrios em preto e branco se transformaram em páginas de cores vibrantes (Veja evolução dos traços abaixo). Em poucos anos, os dois autores antes desconhecidos estavam franqueando a criação para brinquedos e desenhos animados, conquistando de vez o público infanto-juvenil e alçados a novos ícones da cultura-pop.
Depois de alguns anos em baixa, as Tartarugas Ninja voltam com força total na superprodução de Michael Bay, que deve abrir mais uma cinessérie. Os ninjas mutantes adolescentes chegam ao trigésimo aniversário após reverter a seu favor a mão pesada da indústria cultural. O que poderia ser símbolo da exaustão da esteira de personagens fantásticos do universo Marvel, tornou-se exemplo da potência de seu uso como combustível criativo, além da dependência das referências por ela criado. Outros heróis não tiveram a mesma sorte, mas as Tartarugas Ninja deixam a lição de que boas doses de ousadia, consternação, persistência e – por que não? – adaptação, são ingredientes que qualquer história de sucesso.