A Propriedade fala sobre drama pessoais, mas trata de temas coletivos e históricos
“De fato, uma problemática comum corre através da fenomenologia da memória, da epistemologia da história e da hermenêutica da condição histórica: a da representação do passado. Perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de memória aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da influência das comemorações e dos erros de memória — e de esquecimento.” Essa citação do filósofo Paul Ricoeur me veio imediatamente a mente quando encerrei minha leitura de A Propriedade, da quadrinista israelense Rutu Modan, publicado aqui em 2015 pela Martins Fontes.
Porque se trata se uma obra que essencialmente brinca com algo que não se deveria brincar – mas que só se brinca porque aqueles que deveriam preservar a memória são justamente os alvos do escárnio da autora, por conta do seu jogo de lembranças e esquecimentos seletivos em relação ao evento histórico em questão: o Holocausto judeu durante a Segunda Guerra.
A sinopse não faz nem remotamente jus à execução da trama. Afinal, descrever a viagem de uma senhora israelense idosa, Regina Segal, e sua neta, Mica, para Varsóvia, capital da Polônia, para recuperar uma propriedade perdida após a Guerra parece algo frugal. E é. Pois é justamente em torno da frugalidade da relação entre essas duas mulheres, cujas gerações são inexoravelmente fendidas pelas escaras do conflito, que a trama se desenrola.
O que liga Regina e Mica é o seu laço familiar direto – o filho de Regina e pai de Mica faleceu a pouco tempo. Regina então decide ir atrás da tal propriedade – que eles sequer tinham conhecimento de que ainda existia até que um advogado polonês lhes informou disso – para encerrar esse ciclo das suas vidas. Para o amigo leitor mais calcado nas tramas relacionadas aos dramas pós-Holocausto, A Propriedade pode parecer apenas mais um apanhado de clichês sobre as memórias dos horrores da Guerra pelo ponto de vista de uma de suas sobreviventes.
Entretanto, é justamente o fato de que Modan subverte essa relação com a memória – melhor dizendo, destaca algo que ela apenas vê que sua própria sociedade faz – que me fez lembrar da citação de Ricoeur. Tendo emigrado antes da guerra de fato começar, nem Regina, nem Mica – que nasceu muito depois do conflito – estão de fato conectadas aos horrores do Holocausto. Em verdade, toda a memória desses eventos soa apenas como um grande empecilho para ambas, uma estereotipização da qual elas se sentem desconfortáveis em forçosamente participar devido a questões culturais e históricas.
Holocausto enquanto turismo e diversão
O voo das mulheres para Varsóvia, cena de abertura, é simbólico do teor da HQ como um todo. O avião está entupido de estudantes saindo de Israel para uma viagem educativa para os campos de concentração e locais históricos na cidade. Desnecessário dizer que qualquer cena com uma alta concentração de adolescentes necessariamente precisa ser descrita como puro caos e irritação (como ex-professor, posso atestar que a cena é extremamente fidedigna às excursões com alunos que já tive, involuntariamente, que fazer).
Mas é o hipertenso professor desses capetas púberes quem dá a letra do esvaziamento seletivo da memória – o que Ricoeur se refere como “o esquecimento” citado no início do texto – dizendo “Vejamos… Segunda – Treblinka, terça – Madjanek, câmaras de gás, etc. Pessoalmente, prefiro Madjanek a Auschwitz. É muito mais assustador”.
Ao mesmo tempo, Regina e Mica, inicialmente, tentam a todo custo negar qualquer de viagem em busca de suas origens – seu objetivo é lidar com a questão da propriedade e ponto. Entretanto, quando lhes convém – principalmente quando Mica tenta se esquivar do seboso Avram Yagodnik, e quando sua avó parte em sua própria demanda – essa memória do Holocausto subitamente se torna uma espécie de “vitimização” (palavra que usamos aqui o devido cuidado e escrutínio), onde Mica e Regina assumem seus estereótipos porque o momento lhes pede e a história – em tese – lhes permite.
Mais para frente, nós vemos Mica entrando inadvertidamente no meio de uma encenação de nazistas conduzindo judeus para fora do gueto. O ato estava sendo conduzido pela “Sociedade para a Memória Judaica”. Mas o curioso – e que corrobora com a nossa interpretação ricoeuriana do texto de Modan – é a justificativa da representante da Sociedade para a realização da cena; que, em qualquer outra circunstância, seria de absoluto mau gosto (e será que não é?): “As exposições antigas não interessam à geração da internet. Eles querem uma experiência real”.
O que Modan ilustra muito bem é algo que outras obras – como A Lista de Schindler no cinema, Maus nos quadrinhos e É Isto Um Homem? na literatura – trabalham com mais propriedade: a memórias dos eventos de uma sociedade ou um povo sempre estão sujeitas ao processo de apropriação – expressão aqui usada de um pouco de vista hermenêutico – que impede uma compreensão mais precisa do que esses eventos realmente foram e o que eles significam.
Novamente, minha experiência como ex-professor me toca aqui. É inevitável pensar na minha dificuldade pessoal em tentar transmitir as vicissitudes da história brasileira – como qualquer outra, manchada de sangue. A analogia com a qual Modan sarcasticamente trata a maneira como os judeus contemporâneos tratam sua própria história por não estarem diretamente conectados com ela ecoa fortemente na maneira como os brasileiros são incapazes de entender a desigualdade social e o racismo como chagas históricas. Ao contrário, insistem em fazer troça com isso.
De fato, a figura do professor e sua excursão representa muito bem que a memória e a tragédia acabam não sendo apropriadas e esvaziadas de sentido pelas pessoas em si – o que, metalinguisticamente, insere a própria autora nesse contexto – mas pelo sistema educacional que se torna responsável por mantê-la.
O resultado é sempre uma representação pervertida e comprimida dos eventos reais, feita sempre mais para constar no calendário pedagógico oficial do que para estudar o nexo causal intelectual e cultural que permitiu àqueles eventos ocorrem, e identificar esses mesmos elementos no mundo em que vivemos hoje – uma das funções primária do estudo da história enquanto ciência. Necessariamente, no mundo líquido – para usar uma expressão de Baumann – em que vivemos, essa sanha por ter uma “experiência real” sempre acaba resultando em uma farsa grotesca; quando não, como já apontamos, ofensiva.
Propriedade história e cultural
A reflexão que cabe aqui é que a tal “propriedade” da qual a trama – em tese – gira em torno acaba sendo apenas uma metáfora. Embora ela exista na história, o seu título acaba podendo ser interpretado de outra forma, pois embora a propriedade física seja o mote da história da HQ, seu fio condutor é muito mais o debate sobre a propriedade histórica, intelectual e cultural de um povo, oriunda de um sofrimento indizível, mas para as novas gerações também intangível.
Incidentalmente, torna-se salutar ressaltar a habilidade de Modan como quadrinista, pois esta reside justamente no fato de que todo esse nosso breve estudo acima é apenas o pano de fundo da trama. Pois, apesar de se basear nesse contexto histórico e cultural, A Propriedade é um conto sobre corações e vidas partidos pela dor. A resistência no relacionamento entre Regina e Mica não vem apenas de seu pano de fundo histórico, mas – muito mais – particular. Seu cuidado com as relações humanas se revela tanto em detalhes técnicos – como as fontes distintas de letras que pontuam os idiomas e suas características sendo usados naquele momento – como na progressão de seus personagens.
A súbita busca e as indomáveis mudanças de humor de Regina, que poderiam ser facilmente tomadas pelas atitudes de uma velha senil, são, na verdade, detalhes que constroem a visão presente e contundente de um passado que ela acreditava distante. O relacionamento de Mica com Tomasz nos revela a dificuldade que mesmo uma pessoa como ela – moderna e bem resolvida – tem ao lidar com uma herança que ela sente não lhe pertencer, mas que persegue; e afeta diretamente a maneira como ela vê o mundo.
Esse relacionamento entre Mica e Tomasz é também, como muitas outras coisas nessa HQ com tantas camadas, uma metáfora para algo maior. Tomasz tenta usar a história de Regina para sua própria graphic novel, o que enfurece Mica.
Nesse drama pessoal – absolutamente bem desenvolvido nessa breve janela de sete dias na qual a história se passa – vemos um questionamento mais profundo: até onde a reação de Mica é pessoal, e até onde ela revela toda a suspeita histórica de um povo que se acostumou a ver a si próprio como vítima? Até onde um estrangeiro está autorizado a contar uma história que não é sua? A quem pertence uma história? E mais importante: quem tem o direito de lembrar e quem tem o direito de esquecer?
Essas questões não cabem a nós responder. Só o que podemos afirmar é que A Propriedade é um singelo estudo de caso histórico travestido de drama familiar – pontuado por um humor negro que não deveria lhe servir, mas que serve com perfeição pelos questionamentos e posicionamentos que se propõe. Modan escancara para quem quiser ver a condição história e cultural de seu povo – mas apenas por uma pequena janela: as histórias de Regina e Mica.
Habilidade e domínio dos quadrinhos
Essa clareza, incidentalmente, se revela também na magnífica arte e condução do ritmo da história. Largamente inspirada na ligne claire da escola franco-belga de quadrinhos, o uso de linhas sutis acompanhados pelo contraste de tons pastéis em foco e fora de foco dão o tom certo de drama e humor que a história pede. Não obstante, Modan se priva de grandes estripulias na disposição de seus quadros, sendo conservadora no formato, mas extremamente hábil na composição.
Talvez a única falha esteja no desfecho da trama de Mica, onde ela se concatena com a de Regina – Modan acaba se utilizando dos famosos deus ex machina para conseguir as coincidências necessárias para que a história chegue onde precisa chegar. Mas acho que já oferecemos argumentos o bastante para se fazer entender que a obra não depende de um único elemento para se suceder, sendo “maior” do que a si mesma, becketianamente falando.
A Propriedade recebeu o Eisner de Melhor Graphic Novel inédita em 2014. Foi a segunda vez que Rutu Modan recebeu esse prêmio, tendo sido o primeiro por Exit Wounds – outra obra-prima. Rutu Modan, apesar da produção esporádica, é uma das melhores quadrinistas em atividade, e esse volume é certamente uma prova cabal disso.
Só esperamos poder nos “apropriar” de mais trabalhos de Rutu Modan em breve.