Julio Cortázar desmonta narrativas e mentes no duo A Volta ao Dia em 80 Mundos e O Último Round
Muitos escritores encaram o ato de escrever quase como uma ciência, cheia de métodos e recursos estáticos que garantem resultados. A criatividade é uma ferramenta objetiva, que fornece o necessário para se criar uma “boa história”. Boa história? Quem disse que uma história tem que ser boa? Ou ruim? Ou ser? Diria Rubem Alves, em discordância a primeira categoria de escritores que destacamos, que escrever é um ato de feitiçaria – alquimia que cria amálgamas metafísicos de palavras, mundos e ideias. A única regra é: não há regras. E poucas linhagens da literatura abraçam essa filosofia como o fantástico sulamericano – e poucos sulamericanos praticaram feitiçaria como Julio Cortázar.
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O autor belga-franco-argentino é responsável por algumas das mais interessantes conquistas literárias do século passado. Uma primeira impressão nos faria assumir que sua escrita é desconstruída; já que no caso de Cortázar a ordem e qualidade das palavras importa, “desconstruir” não é bem o caso aqui – primeiro, porque a palavra tem um sentido sociológico contemporâneo que não se aplica aqui; segundo, porque “desconstruir” implica em desfazer um padrão que antes era estático.
Muitas vezes comparamos uma obra literária a um monumento, uma grande “construção” – num sentido quase arquitetônico. Pois bem, se seguirmos tal analogia, Cortázar está muito mais próximo de uma criança brincando com Lego do que de um altivo arquiteto elevando edifícios. E se você acha que minha colocação é uma imensa e desnecessária galhofa, você claramente não leu o feitiçeiro Cortázar – tenha certeza que ele preferiria brincar com Lego do que se submeter ao pedantismo estático e enrijecido comum aos apreciadores das belas artes.
Esses dois tomos destacados aleatoriamente aqui no texto, (afinal, é um texto sobre Cortázar, e eu posso me dar ao luxo de mandar meu editor, Daniel Fontana, às favas, e falar sobre eles onde eu quiser – pelo puro prazer de bagunçar a resenha, a vida dele e a do amigo leitor. Agora que eu já ri um pouco, acho que está na hora de fecharmos os parênteses e voltarmos ao texto. Here. We. Go. >) A Volta ao Mundo em 80 Dias e O Último Round, de 67 e 69, respectivamente, apresentam esse doce padrão de subversão ao próprio texto que o autor tanto adorava, e que serviram também para a criação de sua obra-prima-colagem, O Jogo da Amarelinha.
Por essas e outras, esse texto que o amigo está lendo é muito menos uma resenha, e muito mais uma sugestão – praquelas horas em que a gente sente uma necessidade quase física de chutar um balde metafísico; de fugir da samsara, a roda do mundo que nos prende, diria Yoda, nesta rude casca de matéria que são nossos corpos. Talvez a única coisa literal com a qual Cortázar trabalha seja o título do primeiro dos dois tomos – da perspectiva de um feiticeiro e “desmontador” de narrativas, um único dia pode oferecer todas as possibilidades de uma vida, assim como uma vida pode se encerrar sem nunca ter sido explorada.
Pontos de fuga
Dissemos, lá em cima, que se trata de uma autor transnacional. Filho de diplomata argentino, nasceu na Bélgica, mas passou um tempo considerável de sua vida entre Argentina e França. Entretanto, no lugar de cristalizar e destacar suas referências, ele prefere brincar com elas; transitador de mundos e culturas “reais”, imprimiu na sua obra – em particular, nesses dois tomos – a ideia de que o tema dos textos, em si, é muito menos importante do que explora-los e navegar por eles. Foge de seus temas porque gosta de mostrar – ou esconder – que o tema é um ponto de fuga, e não de partida.
Eu gostaria, honestamente – como, em verdade, já fiz algumas vezes, porque o sofrimento alheio provocado pela subversão de padrões me satisfaz mais do que um picolé de limão nesse maldito calor dos infernos que está fazendoenquantoescrevoessetextosuandobicas… Perdão, onde eu estava? Ah sim > – de poder observar o rosto do amigo leitor quando confrontado pelos poemas, textos, ensaios e ardis cunhados pelo escritor nos dois tomos.
O hibridismo latino-americano-europeu do não-argentino, por si só, já causaria um choque. Mas a maneira aparentemente aleatória com que Cortázar escolhe narrar suas não-histórias é que realmente diverte. Submete, ao contrário dos escritores-cientistas do primeiro parágrafo, a forma às necessidades da narrativa, abrindo mão de qualquer característica normativa literária em prol da exaltação dos humores dos textos – que, desnecessário dizer, também variam conforme a vontade do autor, indo do escracho para a melancolia no pular de uma página.
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This is jazz!
Mais do que um escritor de influências europeias – espero que você realmente já tenha sacado a brincadeira com o título do primeiro tomo – ou latino-americanas, Cortázar é um músico. De jazz, para ser mais específico. A única ressalva é que seu instrumento de escolha é a máquina de escrever. E, antes que o amigo leitor ache que eu estou viajando nas analogias, devido ao malditocalordosinfernosfritandomeucérebro, cabe ressaltar: Cortázar é realmente fã dos improvisos de Parker e Monk.
Essa relação do autor com o jazz é uma tremenda janela na qual se debruçar para observar a exploração do autor no dois tomos. Porque a analogia se encaixa como uma luva (ou um Lego): se o jazz é a utilização da beleza da forma como ponte para a liberdade anárquica de notas voando pelo ar – distende-se e se contrai, como o movimento do abafador do trompete – a escrita de Cortázar, da mesma forma, orienta a exploração, de maneira idiossincrática, apenas para permitir ao leitor perder-se em meio as narrativas.
Afim de viajar nas viagens de um viajante (o coloquial aqui fica a vontade do freguês)? Cortázar é o cara para você. Num pacote de turismo de apenas dois pequenos tomos, você pode viajar e explorar diversos mundos – 80, para ser mais preciso, embora, como vimos, “precisão” aqui seja algo estritamente abstrato. Ainda bem. Porque esse único mundo em que nós vivemos, embora seja belo, é um pouco grande e difícil de navegar demais. Já essa única realidade em que nós vivemos é brutalmente enfadonha – para não dizer previsível.
E assim eu encerro meu texto. Encerro? Texto? Meu? Que presunção…
PS: Daniel Fontana, saia do Candy Crush e vá trabalhar.
PS 2: Gosta de literatura fantástica latino-americana em toda a sua glória e bizarrice? Conheça Murilo Rubião!
PS 3: Alguém pode desligar o Sol? Isso está insup