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Uma visão existencialista de O Guia do Mochileiro das Galáxias!

Alguém pode argumentar que tomar chá é uma característica intrínseca dos ingleses. Assim, parece muito apropriado que genial escritor Douglas Adams tenha criado seu personagem, Arthur Dent, obcecado com esse aspecto. Em qualquer outro contexto, ele não pareceria alguém tão ansioso em encontrar uma xicara de chá através da galáxia – mas a própria situação absurda em que ele se encontra em O Guia do Mochileiro das Galáxias (The Hitchhiker’s Guide To The Galaxy) o força a se agarrar a algo simples e compreensível em um lugar onde tudo parece absurdamente complexo e inexplicável. Essa situação absurda? Basicamente, viver.

Não entre em pânico! – Mais fácil falar do que fazer

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Alguém também pode argumentar que o foco de Arthur em algo tão trivial o impede de entender ou fazer qualquer coisa útil sobre as situações bizarras – e muitas vezes perigosas – que vive. Também é importante notar que é apenas Arthur quem poderia mudar sua percepção das coisas, mas ele não parece ser capaz disso. A única coisa que realmente o contém é ele mesmo, o que, de acordo com o existencialismo, só pode dar errado, já que é um clássico exemplo de má-fé em relação ao seu próprio eu. É claro que essa busca pelo chá é alvo da comédia de Adams, na medida em que o contraste do absurdo cósmico vivido por Dent é exaltado pelas características triviais e patéticas as quais ele se mantém fiel (como se dar um rolê pelo universo usando pijamas não fosse o bastante).

Ao menosprezar Arthur implicando que ele não consegue lidar com sua nova realidade, Adams tende a concordar com a tese de que a tal má-fé é algo ruim. Arthur somente reclama sobre como as coisas se tornam realmente difíceis, mas não faz nada de fato em relação a isso. Isso significa que Arthur é fraco ou alguém preso em sua própria mente junto com suas escolhas? Em que situações alguém pode “entrar em colapso” e em quais ela está simplesmente fazendo uma escolha entre tantas outras?

Mesmo assim, tentar achar tarefas simples, ou qualquer coisa que esteja próxima, para se segurar em uma crise é uma reação comum e pode até ter efeitos benéficos para lidar com o estresse. Afinal, e esse é o ponto desse artigo, Arthur não é o único ser humano – e talvez, não apenas o único ser – se debatendo com a sua própria insignificância diante da imensidão do universo. Apesar disso, Adams consegue a proeza de potencializar esse sentimento que quase todo mundo tem quando seu Arthur descobre n’O Guia que as únicas duas palavras que descrevem o seu precioso planeta para todo o resto do universo são “praticamente” e “inofensiva”. É para derrubar qualquer um. A existência a qual todos os humanos se apegam com tamanha passionalidade e que definem praticamente toda a continuidade das nossas vidas reduzidas a duas palavras. Pasmo com essa informação, Arthur entra em choque. Mas seja honesto, amigo leitor, e pense qual de nós não entraria.

Existir – a arte de obter perguntas sem querer e sem respostas.

Quando dois mísseis são transformados pelo fantástico gerador de improbabilidade – talvez o equipamento mais poderoso já imaginado na ficção científica, pois ele não quebra apenas às leis da física, mas do pensamento – eles se tornam em uma baleia e em uma vasilha com petúnias. Caindo em direção ao chão, a baleia começa a se fazer perguntas. E nós deveríamos prestar atenção nas perguntas do adorável cetáceo. Pois ela pondera sobre a sua existência de maneira inocente, relativamente otimista até, fuzilando o leitor com a simplicidade dos seus pensamentos. “Com licença, quem sou eu? Olá? Porque eu estou aqui? Qual é o meu propósito nesta vida? O que eu quero dizer com ‘quem eu sou’? Ok, se acalme, segure firme!”

Felizmente para nós, os cínicos e angustiados, não precisamos lidar por muito tempo com os precisos e importantes questionamentos da amiga baleia – ela rapidamente se espatifa ao atingir o chão e encerra sua breve existência. Difícil não ver esse pequeno ato de Adams como uma metáfora para a existência em si, quando o peso do existencialismo se sobrepõe a uma parca fenomenologia, mas esse não é o ponto. Porque nós não rimos do absurdo da “baleia pensante” em si, mas da frivolidade e da aleatoriedade com as quais os eventos d’O Guia se empilham. Como a própria existência, nada parece ter muita importância, o que induz o leitor a prestar menos atenção nessas coisas, que são potencialmente mais importantes do ponto de vista do intelecto, e mais atenção no desenvolvimento da narrativa que, no fundo, é cômica por ser banal. Como o próprio Adams apontou em certo momento: “Curiosamente, a única coisa que passou pela mente do vaso de petúnias foi ‘Oh não, de novo não’. Muitos especularam que, se soubéssemos exatamente porque o vaso de petúnias pensou aquilo, nós saberíamos muito mais sobre a natureza do universo do que sabemos agora”.

Novamente, o desejo por sentido se torna óbvio e Adams permanece zombando da ideia de “encontrar sentido nas coisas simples” e ser capaz de enxergar o “quadro geral”, e assim, como mencionado acima, expressar marcas registradas de angústia existencial. O absurdo das petúnias pensantes é misturado com a perenidade da questão sobre o que o único pensamento do vaso realmente significava. Estariam elas se focando na coisa errada – e mais importante, estamos nós? Nós podemos mudar o que quisermos ou quem quisermos ao mudarmos nossas escolhas ou estamos presos a um determinismo fatalista maior do que nós? Todas essas são difíceis questões que, infelizmente, por falta de espaço, não podemos tratar aqui, amigo leitor. Mas que são instigantes, são.

O Guia do Mochileiro das Galáxias

Douglas Adams (1952-2001)

“Resistir é inútil”, diria o outro, o que significa que nós estamos predestinados a certas coisas na vida (incidentalmente, a morte) e esse é um sentimento facilmente reconhecível por qualquer um. Contudo, também são as palavras de um jovem guarda Vogon, que Arthur e seu companheiro, Ford Prefect, tentam persuadir para deixá-los fugir de uma prisão Vogon. Ao falar sobre como todas as coisas são belas e sobre tudo o que se pode fazer e ver em uma vida, eles confundem o guarda cuja perspectiva de futuro se resume a gritar e jogar pessoas para fora. Percebendo que o guarda sequer entende muito bem por que ele faz isso, Ford pontua que é ele quem realmente está com problemas (e a piada se resume a Arthur prestes a morrer por asfixia a qualquer instante enquanto os dois debatem).

Os Vogons, uma raça burocrática e sem criatividade, são de muitas maneiras uma crítica de Adams à humanidade em geral – são arrogantes e superestimam em muito suas próprias capacidades. Ao tentar dar ao jovem Vogon alguma perspectiva, Ford e Arthur acabam por fazê-lo questionar tudo o que ele sabe e quem ele é. Perceber o “quadro geral” das coisas é também o tema central da resposta para a questão sobre a vida, o universo e tudo mais. Reduzir tudo ao número 42, a irritante resposta do Pensador Profundo, é uma jogada comicamente ousada de Adams. Se é que ele estava falando sério, ele também estava tirando do sério todos os pensadores existencialistas, o que caminha de mãos dadas com o absurdo do livro no geral. Quando emergem diretamente do caos, os personagens recebem aquela que talvez seja a informação mais importante do universo, mas não fazem ideia de como interpreta-la – o que não deixa de ser outra cômica metáfora de Adams para a condição humana – o que só acaba por gerar mais caos.

A viagem de Arthur pelo universo nos mostra – em tese – que tudo é apenas superficial, e que nada possui significado profundo. Todas as “respostas absolutas” que surgem acabam por se tornar embustes ou apenas irritantemente banais. A resposta “42” é então bastante existencialista se for uma piada, o que, levando-se em conta o que Adams pretende com O Guia, é meio óbvio. Se os existencialistas evocam uma visão científica do universo, é apenas para reforçar o aspecto niilista sobre como quão perdida e abandonada a humanidade está neste “grande esquema das coisas” e sobre como nossa fútil existência nessa partícula de lixo espacial chamada Terra é absurda e sem sentido. Talvez, ao invés d’O Guia, seja melhor não deixar a Terra sem um Rivotril.

O Peixe Babel – Deus estava aqui, mas não entendeu.

Outra das mais famosas analogias de Adams sobre o existencialismo é o Peixe Babel. Deixemos o autor explicar: “O Peixe Babel é pequeno, amarelo e semelhante a uma sanguessuga, e é provavelmente a criatura mais estranha em todo o Universo. Alimenta-se de energia mental, não daquele que o hospeda, mas das criaturas ao redor dele. Absorve todas as frequências mentais inconscientes desta energia mental e se alimenta delas, e depois expele na mente de seu hospedeiro uma matriz telepática formada pela combinação das frequências mentais conscientes com os impulsos nervosos captados dos centros cerebrais responsáveis pela fala do cérebro que os emitiu. Na prática, o efeito disto é o seguinte: se você introduz no ouvido um peixe-babel, você compreende imediatamente tudo o que lhe for dito em qualquer língua. Os padrões sonoros que você ouve decodificam a matriz de energia mental que o seu Peixe Babel transmitiu para sua mente”.

A função do peixinho na trama é muito simples – explicar que Deus existe e, assim, fazê-lo desaparecer em uma nuvem de lógica. Viu? Simples! Mas explicar a visão existencialista da religião já não é tão fácil. Embora não seja necessariamente verdade, é uma crença comum de que o existencialismo pressupõe o ateísmo, pois os grandes autores dessa linhagem conectavam a angústia da ausência de sentido da existência ao abandono da nossa espécie em um universo sem Deus. Porém, de acordo com o livro de Adams, Deus deixou esse universo. É importante notar, contudo, que existem muitos pensadores que trabalham tanto com o existencialismo quanto com a religião. Kierkegaard é um deles e, para ele, ‘Deus’ não pode ser provado ou mesmo se tornar provável, visto que nenhum raciocínio humano pode estabelecer qualquer coisa em relação a infinitude. Mesmo assim, esse ainda poderia ser um argumento para o exato oposto do que Adams diz no livro, e os dois, Kierkegaard e Adams, provavelmente discordariam.

O Guia do Mochileiro das Galáxias é, de acordo com o próprio Guia do Mochileiro das Galáxias, um livro notável, conforme ilustrado pela seguinte citação: “Em muitas das civilizações mais relaxadas do Anel Externo Oriental da Galáxia, o Guia do Mochileiro já superou a grande Encyclopedia Galactica como o repositório padrão de conhecimento e sabedoria, e mesmo que ainda possua muitas omissões e contém ainda muito que é apócrifo, ou ao menos muito impreciso, ainda supera os velhos e provincianos trabalhos em dois importantes aspectos – primeiro, é ligeiramente mais barato; segundo, possui as palavras NÃO ENTRE EM PÂNICO inscritas em letras amigáveis na sua capa”.

O Guia do Mochileiro das Galáxias adaptado ao cinema em 2005!

O Guia do Mochileiro das Galáxias adaptado ao cinema em 2005!

A ideia de uma obra assim tem seu apelo. Um livro que possua a descrição acima certamente é mais atraente do que qualquer enciclopédia conhecida (toma essa, Wikipedia). Quando lidando com as dificuldades da vida, o amigo leitor percebe que respostas são igualmente difíceis de se encontrar, mas, pelo que podemos ver no livro de Adams, aparentemente o Guia possui todas as respostas. Não é apenas uma sátira as enciclopédias reais – físicas ou virtuais – mas sim uma brincadeira do autor em relação à pressa e prepotência que a humanidade tem em relação ao próprio conhecimento, o que não é apenas uma questão existencialista, mas também ontológica.

Um dos grandes amigos de Adams, ninguém menos que Neil Gaiman, diz que a ideia de tal livro veio a Adams espontaneamente, e combinado com seu tom mais positivo, nos faz pensar que era muito querida para o autor. Portanto, é bastante razoável pensar que este, na verdade, é um aspecto altamente não existencialista de Adams – que ele realmente desejava que um livro assim existisse. Tamanho mergulho no que nós, lá em cima, chamamos de “má-fé” nos deveria fazer questionar todo o existencialismo d’O Guia que debatemos até aqui. Mesmo assim, o uso de sátira e ironia, combinados com outras “verdades” simplificadas e fáceis – como por exemplo a baleia – nos indicam que o Guia pode ser uma ocorrência isolada na existência do universo, e não o aspecto geral sobre o qual devemos nos debruçar sobre o livro. Pois, aí temos o exemplo mais conhecido da trilogia de Adams, uma toalha pode parecer um objeto comum e ordinário das nossas vidas, mas O Guia alega ser muito mais.

Toalhas – não é “se”; é “quantas”

Uma toalha, diz O Guia, é a ferramenta mais incrivelmente útil que o mochileiro interestelar pode ter. Parcialmente pelo seu imenso valor prático – você pode se cobrir com ela, pode deitar nela, pode dormir nela, pode usá-la para navegar o pesado e lento rio Moth em uma mini-jangada, pode (molhada) usá-la em combate corpo a corpo, pode enrolar sobre seu rosto para protege-lo de gases tóxicos, pode agita-la como sinal de socorro e, obviamente, se secar. Se você vai ter o objeto mais útil do universo no seu banheiro, ao menos tenha a certeza de que você vai fazer a coisa do jeito certo. Novamente, ao sugerir que algo trivial como uma toalha pode ser potencialmente um salva-vidas para todas as circunstâncias, Adams, por oposição, reduz a importância de qualquer outra posse – sim, eu sei que você está pensando em todo o dinheiro que gastou no E-bay, caro leitor. Mas essa é outra das grandes brincadeiras de Adams. Zombar, de maneira sutil, do valor superestimado que damos às traquitanas cotidianas.

A ideia de que algo que os seres humanos realmente precisam, para resolver seus problemas do dia-a-dia, não é nenhum tipo de avançada tecnologia alienígena, mas algo que todos os dias você esfrega nas suas partes baixas, é de alguma forma reconfortante. Por outro lado, não deixa de ser comicamente filosófico pensar em todas as possibilidades – todas – que um objeto tão comum oferece. Afinal, na contramão dos maiores nomes da ficção científica, Adams não projeta uma superpeça de tecnologia que os cientistas do mundo real vão quebrar a cabeça durante anos para tentar reproduzir; ao contrário, reinterpreta de maneira criativa e absolutamente bem fundamentada, um objeto banal.

Se nós parássemos de procurar grandes significados, ou por coisas sempre novas, ou outras para resolver problemas aleatórios, talvez nós pudéssemos olhar de volta para a realidade e descobrir incríveis novos aspectos do que já temos.

A aventura, amigo leitor, pode começar no seu banheiro.

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