A obra póstuma de Tolkien mata um pouco a saudade dos fãs do Professor
Mesmo quando jovem, as ambições intelectuais de Tolkien não eram poucas – ele tinha um projeto, como imenso conhecedor de mitologia, história, literatura e filologia que era – de reconstruir um legendarium fundamentalmente inglês. O autor percebia que a rica e vasta história narrativa e folclórica inglesa poderia muito bem se comparar a outros mythos do ocidente; mesmo o poderosamente influente greco-romano. Entretanto, a tarefa era hercúlea, e um outro mythos, para nossa imensa felicidade, dragou toda a atenção de Tolkien – Arda, o mundo secundário do autor de O Senhor dos Anéis.
(Esta postagem faz parte do nosso especial Rei Arthur. Confira também a crítica do novo filme e uma lista com cinco produções sobre o personagem)
Isso não impediu o autor de tentar. Dessa tentativa surgiu A Queda de Artur, um poema épico que narra algumas das sagas do maior herói mítico da Inglaterra – o Rei Arthur. “Algumas” sagas porque, como muitos outros textos de Tolkien, os poemas arturianos do autor estavam perdidos em caixas e mais caixas de esboços e rabiscos deixados pelo autor. Coube ao seu caçula, guardião – e herói particular dos fãs do escritor – Christopher Tolkien, recuperar os textos, e entregar nas mãos de seus estupefatos editores da HarperCollins para publicá-los em 2013.
A Queda de Artur não é para iniciantes da obra tolkieniana – ela é um exercício primevo de Tolkien e seu conhecimento mitopoético, aquele que reconstrói através da métrica poética, eventos míticos/históricos. O fato de ainda narrar suas histórias na forma de poesias – técnica que ele iria usar como adorno indelével de seu legendarium, e que ainda estava sendo refinada – torna a obra uma leitura mais difícil e menos dinâmica em relação ao corpo geral de sua obra. Mas não menos deslumbrante, para quem tem interesse no autor – ou coragem de expandir seus horizontes literários.
A versão da publicação brasileira – sob a responsabilidade habitual da editora Martins Fontes – traz uma edição bilíngue, com a tradução do genial Ronald Kyrmse – o humano mais confiável do Brasil no que toca a tradução das obras de Tolkien – e a versão original. Christopher Tolkien, ciente de que o trabalho de seu pai pode ser um tanto hermético aos novatos, não poupou esforços para tornar a edição mais acessível ao leitor casual e, principalmente, aos leitores egressos da Terra-Média.
Os textos inclusos no volume, que ajudam a engrossar para duzentas páginas o texto original de somente quarenta, fazem questão de explicitar a conexão do volume aos textos de O Senhor dos Anéis, estabelecendo A Queda de Artur como uma espécie de ensaio para o que estava por vir na mente genial de Tolkien. Não que seja necessário muito esforço; há exemplos explícitos, como a aparição de uma floresta também chamada Mirkwood, até a técnica aliterante do poema, que os mais atentos vão remontar aos poemas entoados em Rohan, a terra dos cavaleiros em O Senhor dos Anéis.
Christopher, nos textos introdutórios, também faz questão de conectar os estudos mitopoéticos feitos pelo seu pai para confeccionar A Queda de Artur, aos textos que compõem a parte mais densa de seu legendarium – O Silmarillion. E esse é um aspecto interessante. Pois, como dito, a obra em questão é composta por poemas erráticos que tentam reconstruir o mito arturiano e, por consequência, dar início a um mythos puramente e orgulhosamente britânico. Entretanto, como também dissemos, o trabalho foi interrompido, o que poderia deixar uma dúvida sobre a capacidade de Tolkien para a tarefa.
Entretanto, quando Christopher nos apresenta a noção de que o Silmarillion é a extensão da construção desse legendarium – e do conhecimento de seu pai sobre mitologia e filologia – nós podemos perceber com mais clareza e certeza que Tolkien poderia muito bem ter concluído a tarefa, tornando-se talvez o nome mais importante da história da mitologia e da literatura inglesa. Mas ele preferiu se dedicar a criar o próprio mundo – tarefa, convenhamos, ainda mais difícil. Pior para a Inglaterra, melhor para todos nós.
Um Artur à altura das lendas de Tolkien
A representação de Artur no volume é bastante interessante. Ele é é visualizado como um rei fiel a Roma, cujas legiões deixaram a Grã-Bretanha – algo surpreendentemente próximo do conceito original do filme de 2004, Rei Arthur (aquele com Clive Owen) que pretendia oferecer uma “versão histórica” da lenda arturiana, mas – obviamente – com muito menos capacidade do que qualquer coisa que Tolkien seria capaz de fazer. O poema retrata a época das grandes migrações para o oeste dos povos germânicos que acabariam por ocupar a Europa, levando os celtas até à beira do Atlântico.
Numa altura em que a Grã-Bretanha era, em si, só recentemente convertida para a cristandade, Artur empreendeu uma guerra esmagadora contra os invasores germânicos e os seus “velhos deuses”. Mas o seu é um mundo que aos poucos se desfaz, dragado pelas marés do tempo: sabemos ele não vai ganhar contra a traição em casa.
Existe uma certa melancolia em A Queda de Artur, como na maior parte da obra épica deixada por Tolkien. Sendo um poema épico inacabado, também não há uma estrutura convencional de começo/meio/fim, mas há um ar reconhecível que torna a história toda mais palatável; como se Tolkien usasse a forma poética para trazer à tona o eco de mitos perdidos em nossas mentes históricas, e lembrar-nos de que não se tornam grandes lendas aquilo que não exige grandes sacrifícios.
Dessa forma, A Queda de Artur é muito menos uma construção narrativa do que uma narrativa épica per se. Não existem facetas profundas nos personagens. Eles representam visões unidimensionais de um tempo esquecido, e sua condição arquetípica conduz a história quase tanto quanto a narrativa. O poema, assim, trata, quase em sua completude, sobre manobras militares e feitos épicos de heróis, pontuada pelos típicos elementos mágicos e sobrenaturais do gênero, onde cada um representa elementos típicos de sagas épicas dos mitos.
O próprio Artur, no poema de Tolkien, é um herói épico à altura da lenda: ele é um modelo de líder militar justo e sábio, ao mesmo tempo em que é um herói valente e espadachim temível. Já Lancelot tem um impulsivo e feliz otimismo, fora de sintonia com os tempos.
O seu amor por Guinevere é deslocado: ela é um “ganancioso coração” colecionador de ouro ou de amor, cujos sentimentos se adequarão ao carácter de serviço público da Távola Redonda, honra e cavalheirismo: uma “mulher cruel/formosa como as mulheres-fada e cruel de espírito/no mundo caminhando para o infortúnio dos homens”. Mordred é um escravo do seu desejo pela Rainha, sem encontrar saída para as suas energias frustradas exceto em ações conspiratórias.
Gawain é menos uma personalidade do que um pedaço de granito, um homem cuja “glória aumentou/ por vezes obscureceu”. Ele carrega uma espada encantada com runas, e fala em convocar a ajuda do povo das “fadas” da Ilha de Avalon.
E é em Avalon que, de uma forma curiosa e tentadora, A Queda de Artur se encaixa com a mitologia da Terra-Média de Tolkien; quando usamos o termo “mundo secundário” para nos referirmos a Arda e a Terra-Média, o fazemos pois Tolkien via seu próprio mythos não como uma criação, mas como uma descoberta – aquele mundo não é outro mundo, mas o nosso, em um tempo a muito esquecido.
No entanto, as boas intenções de Christopher e a habilidade da tradução de Kyrmse não aliviam – ou apenas em parte – a maior dificuldade desse texto: sua métrica aliterante pode ser desafiadora para leitores casuais e/ou pouco habituados.
Formato desafiador, mas que vale muito a pena
A escolha dessa métrica, por si só, já é um início refinado do estudo de Tolkien sobre o corpo da mitopoesia inglesa – esse formato é muito típico do entroncamento idiomático germânico-ocidental, mas pouquíssimo usado nos poemas de entroncamento latino; forma dominante dos idiomas ocidentais contemporâneos, o que torna ainda mais difícil a assimilação da leitura e da tradução.
No geral, na tradição latina, os versos de poemas são feitos em rima, ou seja, quando, em duas ou mais palavras, a última vogal acentuada, com tudo o que se lhe segue, tem idêntica sonoridade ao que a precedeu. Nos versos aliterantes de A Queda de Artur, a técnica é diametralmente oposta. São ligações sem rima, onde as consoantes ditam o ritmo, sendo repetidas dentro do verso. Isso torna a leitura mais coesa, mas menos “musical”.
A diferença tem muito a ver com a tradições antigas de onde são oriundas; enquanto no entroncamento latino, a poesia era criada pelo lirismo para a apreciação artística, no entroncamento germânico ela era usada de maneira mais próxima a intenção da mitopoesia original – a transmissão de conhecimento proto-histórico através de sagas e grandes narrativas.
Quando se entende essa distinção, o trabalho de Tolkien em A Queda de Artur se torna ainda mais louvável – apesar da dificuldade da tarefa, o autor foi relativamente bem-sucedido ao tornar legível ao leitor atual uma lenda medieval considerada difícil. Ele resgatou a forma de um inglês arcaico sem se tornar incompreensível – ou pior.
Já para os mais calejados na obra de Tolkien, como quem já leu o resgate de Beowulf pelas mãos de Tolkien, ou leu outras grandes sagas em métrica aliterante do autor, como Sigurd e Gudrún, não deve ter grandes dificuldades para desfrutar do volume. Mas, para esses, existe um outro problema – é apenas um fragmento, e é,obviamente, um dos últimos esforços de Christopher para trazer a obra perdida de seu pai à luz. A fonte está secando, e, em breve, estaremos privados da habilidade de um dos maiores demiurgos da história.
Mas se existe algo que Tolkien nos ensinou é que toda lenda persiste ao tempo. Embora talvez não tenhamos mais materiais novos daqui a algum tempo, ainda teremos toda a obra do Professor para desfrutar pelo resto de nossas vidas.
E quem irá dizer que J. R. R. Tolkien não é, ele mesmo, uma lenda?