Maurício Gomyde abraça a hipérbole em Surpreendente! e produz um bom escapismo emotivo
Livros com temáticas açucaradas existem aos baldes por aí e Surpreendente!, de Maurício Gomyde, é um desses casos. Contudo, existem algumas (boas) diferenças substanciais entre esta obra e a maioria das outras além de uma tecnicalidade interessantíssima aqui.
Como de praxe, à sinopse: Pedro é um jovem cineasta que tem um problema que limita parte da sua visão. Um dia, ao perceber que teria uma chance única de fazer uma viagem para produzir um longa-metragem, embarca com seus amigos Fit, Mayla e Cristal numa jornada de despedidas e autoconhecimento, enquanto tenta fazer o filme de sua vida.
O livro é um romance mais destinado ao público jovem e foi lançado em 2015, pela Editora Intrínseca. Aqui há de se parabenizar Gomyde pela metalinguagem inferencial. Ele não apenas mistura a temática audiovisual e literária de forma textual, como mescla narrativa de três arcos cinematográficos dentro de uma montagem literária padrão com quatro elementos (Introdução, Conflito, Clímax e Desfecho). São estruturas que conversam entre si em ambas as suas áreas e que aqui estão também orgânicas. Esta roupagem de mescla, se não soa inédita ou até mesmo profunda como estudo, ao menos consegue ser sincera, ágil e muito bem feita. Nitidamente é um livro feito como um filme para contar, em partes, sobre a construção de um filme. Mais metalinguístico, impossível.
A trama é equilibrada dentro de sua proposta. Há variações pontuais entre romance, humor e drama que auxiliam numa história que passa longe de ser complexa, mas que se concentra em trazer intensidade. Tudo é extremo. O sentimento de rejeição, a (re)descoberta do amor, os problemas de saúde, as epifanias. Isto seria um defeito se o autor não tivesse feito a construção disso tudo de uma maneira descontraída e leve.Essa leveza passa também pela escolha do Narrador-Observador que varia para Narrador-Onisciente em momentos cirúrgicos e específicos, onde a função de demonstrar sentimentos é exacerbado. Esse mesmo narrador consegue ser um bom anfitrião em determinados momentos, inclusive entre capítulos que exigem passagem de tempo e que terminam de uma forma abrupta. É através dele que Maurício Gomyde mostra a segurança de quem sabe exatamente como a história vai terminar desde as primeiras páginas com ideias seguras de si e bem concatenadas.
(Confira as resenhas de Serpentário e A Fogueira da Bruxa !)
Citada a concatenação narrativa, ele amarra bem as pontas da história, inclusive as que são aparentemente escritas como pequenos detalhes. Essa racionalização lembra muito um Christopher Nolan (o conceito literário da obra me permite algumas comparações entre profissionais de ramos diferentes) às avessas, onde leveza e uma certa inocência é interligada com um pouco de felicidade e vicissitudes nem sempre felizes da vida. Tudo é explicado, ainda que em alguns momentos venham acompanhados de certo melodrama em que o crível dá lugar ao exagero num tom que não casa com a trama, por mais que de forma subsequente, renda bons momentos posteriores.
Jornada do herói
Mais especificamente sobre a obra, há algumas poucas situações facilmente resolvidas com roteirismos aqui e ali e que faltam em tons de cinza, já em outros momentos essa ausência afeta diretamente os coadjuvantes Fit, Mayla e Cristal. Dizer que eles são unidimensionais – por vezes santificados — seria bondade, mas conseguem ter funções específicas dentro da trama e com camadas básicas exploradas à exaustão. O que leva à questão: Personagens pouco desenvolvidos, mas talhados fortemente no raso que apresentam, podem ser tão ricos quanto personagens estudados do ponto de vista narrativo? A resposta vem muito mais de como a narrativa os sugere e aqui Gomyde fica num meio-termo entre o o superficial e carismático, tornando-os orbitais e importantes às necessidades de Pedro enquanto todos os conflitos estão reservados ao protagonista.
Parte da graça e riqueza de Pedro no papel principal é que ele se desenvolve randomicamente. Suas incertezas, medos, impulsos, aleatoriedade são impressas frequentemente nas páginas de Surpreendente! e sem muitos privilégios ao personagem sofrido, mas vivaz. Há uma nítida Jornada do Herói (Premissa básica de personagens, divididas em 12 passos num ciclo de acontecimentos que indica crescimento e superação. Criada por Joseph Campbell, essa jornada é marcada com momentos clássicos metafóricos de quem passa pelo evento como Chamado à Aventura, Recusa, a “Caverna”, Ressurreição e entre os outros) mas aqui, ao invés de ser grandioso, tem contornos intimistas, afinal, é uma história sobre Pedro e sua coexistência consigo mesmo.
Todo o universo do livro, para alegrias ou tristezas, gira em torno do personagem. Aqui isso é proposital, já que a história só acontece por causa de um problema de saúde de Pedro e todo o resto, devidamente oriundo disso, funciona como catarse ainda que algumas “””coincidências””” aconteçam de forma brusca.
As hipérboles dos personagens são bem evidentes e carregadas, por vezes parecendo um tanto juvenis, já que aqui, são adultos na fase dos 25 anos. Os diálogos são feitos cheios de sentimentalismo e as reações em geral são potencializadas. As convenções que giram em torno do personagem e certas facilitações acontecem de forma pontual, mas que sem elas, a história não teria prosseguimento ou não causariam os sentimentos que causam. É episódico e por vezes dão certo desconforto pela aparente obrigação de trazer sensações ao leitor. A impressão de manipulação de sentimentos acontece em poucas situações, mas existem. O que não quer dizer que não funcionem. E como funcionam. Lágrimas rolaram pelo rosto deste crítico em pelo menos três oportunidades.
Assim, ao leitor com uma elasticidade criativa maior, vai ver com bons olhos essas conveniências e quem possui um olhar mais incrédulo pode se incomodar. Então significa que estas situações são ruins? Depende. Na realidade, mostra que alcançaram sua finalidade em causar uma reação. E se podemos considerar isto narrativamente condenável por um lado, já emocionalmente pega no contrapé. Por isso, para compreender Surpreendente! precisamos entendê-lo como obra construída com outros pilares além do literário. A imagética bem delineada das cenas descritas já indica bem que o processo se deu como um livro-cinemático ou, à grosso modo, um storyboard esforçado sob uma camada de um competente roteiro literato de Gomyde.
Isto posto, Surpreedente! é fácil de ser lido e sem maiores pretensões. Por vezes escorrega no exagero emotivo idealizando a história, já em outras entrega sentimentos genuínos de fazer chorar. Tem bons personagens mas que sofrem pela falta de um algo a mais que nunca vem, enquanto servem a um protagonista e com uma lição particular a aprender. Nunca se prende ao mesmo lugar ou a uma situação comum, abraçando a elegia de uma road trip em que o destino é o que menos importa. Tem defeitos, mas sobressai em qualidades açucarada. Agrada e mostra que para ver o que realmente nos move, por vezes é preciso aprender a enxergar através dos próprios tombos.
E nesta busca para ser um bom livro, Maurício Gomyde consegue entregar também um bom filme.
*RODAPÉ DO CRÍTICO: Caso se interesse pela obra, evite sinopses de resenhistas e alguns sites (da própria editora também), já que contém spoilers de situações que acontecem depois da página 100 e que não são apropriadas para se saber antes.