Lovecraft dizia que “o verdadeiro conto bizarro tem algo além de um assassinato secreto, de ossos ensanguentados ou de lençóis assombrados arrastando correntes, bem de acordo com as regras. É preciso criar certa atmosfera do pavor ofegante e inexplicável que se sente diante de forças externas desconhecidas […] e com o potencial para se tornar a trama central, daquela que é a mais horrível das concepções do cérebro humano – uma suspensão ou derrota das leis da natureza […]“. E as narrativas encontradas em Sombras de Carcosa possuem exatamente essas características que desafiam a física do mundo comum em que se encontra o leitor.
Sombras de Carcosa: Contos de Terror Cósmico (Shadows of Carcosa: Tales of cosmic horror) é uma coletânea concebida originalmente em 2002 por D. Thin e publicada no Brasil em 2015 pela editora Poetisa. O livro traz contos de Ambrose Bierce, Edgar Allan Poe, Bram Stoker, R. W. Chambers, M. P. Shiel, Arthur Machen, Henry James, Walter de la Mare e H. P. Lovecraft. Tratando-se de várias histórias de diversos autores, seria muito estranho atribuir uma nota como usualmente fazemos aqui. Por isso, neste texto você encontrará algumas impressões que permeiam os contos com relação ao gênero, aos autores e sua importância histórica. Mas já adianto que vale a pena o investimento.
Apesar do que sugere o subtítulo da obra, grande parte dos contos não são sobre ameaças vindas do espaço. Eles estão mais para as situações bizarras que desafiam nossa compreensão da natureza, não necessariamente originadas fora de nosso planeta. Muitas das histórias escolhidas para formarem o conjunto têm origens muito mais familiares do que os próprios personagens gostariam de admitir.
Como os escritores são contemporâneos, percebemos a grande influência que um teve sobre o outro na gênese deste estilo peculiar do terror, principalmente no caso de Ambrose Bierce, R. W. Chambers e H. P. Lovecraft. No caso de Bierce, dois de seus contos mais famosos, intitulados Carcosa e A Coisa Perversa, sobreviveram além dos braços de seu autor. Carcosa é citada várias vezes em outras obras, como em O Reparador de Reputações de Chambers e até mesmo em tempos atuais como na primeira, e excelente, temporada da série True Detective (tema de um episódio do nosso videocast), que também utiliza-se do Rei de Amarelo do próprio Chambers. Também é notável muitos aspectos semelhantes nas obras destes três autores, principalmente em relação à falta de uma resposta final sobre determinado evento e de como os personagens são tomados pela loucura após serem expostos à coisa indescritivel.
Outro fato importante a ser considerado é que esses autores viveram em uma época pós-iluminista, onde o pensamento racional ganhou força e a Revolução Industrial fez com que o homem tivesse a capacidade de realizar coisas que antes eram inimagináveis. Agora o homem podia entender e “superar” a natureza. Dessa forma, o terror mais folclórico e mítico, com demônios e monstros, já não produzia o mesmo efeito. Como a ciência passou a explicar a natureza, as histórias de terror passaram a utilizar elementos que se encontravam nos cantos obscuros onde o método científico ainda não havia iluminado. Mistérios sobrenaturais, aparições, monstros extra-dimensionais, entre outras coisas inomináveis, passaram a fazer parte dessa nova vertente do gênero. Com as novas descobertas nas áreas da física e astronomia no início do século XX, um novo campo fértil para a imaginação acabara de surgir. Plutão, recentemente descoberto na época, era representado por Yugotth no conto Um Sussurro nas Trevas de Lovecraft, com sua estranha e sinistra órbita à beira de nosso sistema solar.
Após a leitura, percebemos que muitos elementos criados por esses autores são revisitados até hoje, praticamente um século depois. Claro que, algumas vezes, mal utilizados e o resultado final é enfadonho, mas quando inseridos de maneira sagaz e inventiva, temos produtos interessantes. Afinal, muito do que foi escrito nessa época era concentrado na atmosfera inquietante da narrativa e seus mistérios que nunca eram revelados em sua totalidade. Dessa forma, a curiosidade e interesse em cima desse estilo permanece e suas ramificações são inquantificáveis. Datados apenas pela época em que se passam as histórias, os contos da coletânea permanecem atuais também pela sofisticação da escrita, que além de conseguir criar o clima correto para o enredo, também exigem do leitor um alto grau de atenção e nível imaginativo, muito diferente de alguns exemplares mais modernos que abusam da verborragia e exibicionismo em suas partes mais pretensiosas.
Sombras de Carcosa é um livro obrigatório para qualquer um que tem interesse em se aprofundar no gênero do terror. Aqui, o leitor não encontrará historinhas sobre bonecas possuídas, fantasmas que atormentam o sono ou casas amaldiçoadas. Não adianta chamar um padre ou investigadores paranormais para resolver seu problema. Nesses contos, a racionalidade do que se vê é colocada em xeque a todo o momento. Tem-se apenas uma sensação bizarra e verdadeiramente aterradora do desconhecido e do inominável.