É muito mais fácil encontrar quem assistiu à adaptação cinematográfica homônima de O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish), dirigida por Francis Ford Coppola e lançada em 1983, do que alguém que leu o livro de Susan E. Hinton. É um fato que o cinema tem um alcance bem maior que a literatura, mas ele também chama atenção para determinadas obras, quando estas vão para as telas, além de viabilizar a publicação de tais livros fora de seu mercado natal. Este é um caso, claro, já que a editora Benvirá fez questão de estampar o nome do diretor na capa desta edição, já há alguns anos em catálogo.
Originalmente publicado em 1975, o texto acompanha um curto espaço de tempo na vida do jovem Rusty James, que vive em uma pequena cidade de Oklahoma. Obstinado em ressuscitar algo que ele considera como os dias de glória das gangues, sua ambição é ser um grande líder neste meio. Abandonado pela mãe e criado por um pai alcoólatra, o garoto de 14 anos é inspirado pelo irmão mais velho sumido, que já ocupou o lugar que ele almeja, referido apenas como o Selvagem da Motocicleta (tradução que vem do esdrúxulo título nacional do filme –no original, o apelido do personagem é Motorcycle Boy). O protagonista tenta desesperadamente se igualar à lenda em torno de seu irmão, mas quando este reaparece com uma atitude inesperada, ele é obrigado a enfrentar a realidade sobre seus sonhos.
Susan E. Hinton, no momento da publicação de O Selvagem…, já tinha um sucesso editorial no currículo, estreando igualmente com o retrato de um mundo juvenil marginalizado. A escritora nasceu em 1948 – em Tulsa, Oklahoma, como seus personagens – e começou a escrever ainda adolescente, publicando The Outsiders em 1967, também filmado por Coppola em 1983. Falando sobre a angústia e o tédio de uma geração desperdiçando seu potencial em uma cidade falida, ela acertou em se debruçar sobre um mundo da qual ela mesma fazia parte, uma intimidade que é perceptível na trajetória de Rusty James e seu irmão. Infelizmente, apesar de lidar com uma situação que continua relevante e causa identificação em jovens de outros cantos do mundo, existem alguns defeitos a considerar.
Não há como deixar de observar que as coisas acontecem em uma velocidade anormal, como se estivéssemos lendo o resumo de algo maior. A situação do personagem principal já o torna simpático, é verdade, mas é difícil nos importarmos com vários acontecimentos que encontramos nestas páginas, como o desenlace do namoro entre ele e Patty. O irmão mais velho, uma figura interessantíssima que tem seu próprio antagonista na cidade, também acaba desperdiçado nesta correria. Talvez alguém tente justificar isso pelo fato de que o livro cobre, como já citei, um período curto na vida do protagonista, mas não é esse o caso. A autora simplesmente deixa de lado o desenvolvimento e as consequências dramáticas de certos eventos. Cortando esses trechos que não levam a trama a lugar algum, sobra muito pouco para sustentar a narrativa.
Não é o caso de afirmar que um livro precise ter um número maior de páginas para ser bom, este tem menos de 200, mas a sequência dos acontecimentos em O Selvagem… não dá tempo para o leitor se envolver de verdade com esse mundo, confiando demais no apelo que personagens desajustados, mesmo em meio a conflitos básicos deste tipo de história, costumam exercer sobre o público geral. Até funciona, de uma certa forma, mas também frustra em igual medida.
Neste caso específico, é necessário entrar um pouco mais fundo no assunto da versão cinematográfica, já que Coppola co roteirizou ao lado da própria Susan E. Hinton, dando origem a um dos poucos filmes que pode ostentar a condição de superior que o livro que o originou. Este é um caso em que os dois responsáveis parecem ter entendido perfeitamente o caráter visual do material que tinham, além da oportunidade da autora em revisitar e aproveitar melhor esse universo, ao mesmo tempo em que não abriu mão da fidelidade ao texto. Comparar os dois, procurando refletir sobre as escolhas da adaptação, se torna um exercício que acaba valorizando o livro, ironicamente.
Desde a opção por uma fotografia em preto e branco, além de um trabalho de câmera que traduz a sensação de sentir-se fora do lugar e com o tempo acabando, o filme acerta em aumentar um pouco a idade dos personagens principais. Matt Dillon e Mickey Rourke encabeçaram o elenco, respectivamente como Rusty James e Motorcycle Boy, com o segundo adicionando camadas à composição apenas com seu jeito calmo e fala mansa, contrastando com a imagem criada pelo que falam sobre ele. A própria relação entre os personagens e os tais peixes de briga do título original, subaproveitada no livro, ganha dimensões mais relevantes em sua tradução para o audiovisual, graças aos recursos próprios da mídia. Pode até ser um filme menor perto do que Coppola realizou na década anterior, período conhecido como Nova Hollywood, mas traz em seu DNA o espírito daquela época, o que não é pouco.
O Selvagem da Motocicleta não toma muito tempo do leitor, o que significa que é difícil entediar-se demais. No entanto, o grande incentivo para ler é realmente a produção de 1983. Se você já conhece o filme e gosta, vale comparar e o prazer é pensar no processo de adaptação. Caso você nunca o tenha visto, mas tem vontade, tente ler o livro primeiro. Não posso falar sobre essa experiência, já que comigo foi o inverso, mas imagino que será, no mínimo, instrutivo.