Uma edição que reúne sete contos de um peso-pesado da literatura de ficção científica, que serviram de base para produções cinematográficas, é realmente um objeto de desejo para qualquer admirador do gênero. Infelizmente, também é um testemunho de que o cinema de grande orçamento pode ter as melhores premissas, quando se aventura pelo segmento, mas apenas isso não garante realizações à altura do material original. Ainda que o subtítulo da resenha refira-se à natureza das histórias em questão, pode incluir, ironicamente, as decisões estéticas e conceituais das respectivas adaptações.
Philip K. Dick, além de ser famoso pela autoria do livro que originou Blade Runner (uma das poucas adaptações bem sucedidas), também é conhecido por criar situações onde os personagens precisam reformular seu conceito de realidade, já que essas noções se tornam um tanto frágeis e relativas na situação em que se encontram, expressando uma paranoia real do escritor. Realidades Adaptadas é uma coletânea da editora Aleph, com histórias curtas que chegaram à Hollywood, mas não caberia destacar os erros e acertos destas produções – que oscilam entre o bom e o descartável, no máximo – sob o risco de alongar desnecessariamente o texto, portanto, o foco aqui é o escopo, a qualidade e a relevância do trabalho de K. Dick.
Lembramos para você a preço de atacado (We can remember it for you wholesale), deu origem a O Vingador do Futuro (Total Recall), filme de Paul Verhoeven, de 1990, refilmado em 2012 por Len Wiseman. O conto, publicado em 1966, mostra o operário Douglas Quail, obcecado em viajar ao planeta Marte, mas acaba apelando para uma empresa que implanta memórias e cria no cliente a ilusão de que realmente esteve lá. Durante o processo, algo é descoberto, colocando em xeque aquilo que Quail tem como sua identidade e implicando em uma ameaça à sua vida.
Se a “simples” pergunta “Quem sou eu?” permeia toda a obra do autor, neste conto específico ele consegue ir muito além, trazendo um desfecho que discute até onde o altruísmo pode chegar antes de tornar-se arrogância. Profundo e ainda atual, com certeza é um dos melhores entre este conjunto.
Segunda Variedade (Second Variety), de 1953, foi adaptado em 1995, com o título Screamers – Assassinos Cibernéticos (Screamers), dirigido por Christian Duguay. A contextualização é importante, já que esta pequena história talvez não soe tão impactante hoje, mas o mundo vivia o clima de Guerra Fria no início dos anos 50. Situado em um futuro onde o conflito de fato aconteceu, a humanidade sofre com máquinas autossuficientes que retalham seres humanos detectados no perímetro, como se fossem répteis escondidos no solo, uma invenção dos EUA que se voltou até contra eles mesmos. Percebemos que poucas pessoas sobraram, enquanto acompanhamos a jornada do Major Hendricks, marchando até o abrigo russo mais próximo para propor uma colaboração. Este caminho mostra a ele o quanto essas máquinas evoluíram.
Encontrando alguns soldados russos, abrigados com uma mulher, agora precisam escolher entre aguardar a morte parados ou tentar deslocar-se de volta. O problema, além do perigo já familiar, é a desconfiança instalada quanto à identidade de cada um deles. Outra premissa fantástica, aliada com uma discussão forte sobre a mentalidade belicista da época, de quebra fazendo o leitor refletir um pouco sobre o futuro daquele mundo alegórico e, de alguma forma, terrivelmente plausível.
Impostor (Impostor) gerou um filme homônimo em 2001, dirigido por Gary Fleder. O conto menos interessante desta edição foi publicado em 1953, também necessitando de contextualização para uma melhor apreciação. Spence Ollham é um cientista trabalhando em um projeto militar, durante uma guerra contra alienígenas, mas sua rotina é virada do avesso ao ser acusado de ser um robô espião, carregando uma bomba em seu corpo que seria acionada por uma frase. Mesmo um interrogatório não confirmaria sua identidade, já que os alienígenas poderiam criar um autômato humanoide que pensasse ser humano, contando até com as memórias de alguém que houvessem raptado. Segue-se a correria pelas provas, até a revelação final.
Provavelmente, uma boa parte do público daquela época poderia surpreender-se com o final. Hoje é bem mais difícil, valendo apenas pela curiosidade e por uma dúvida inevitável que ele causa: Por que alguém achou que isso sustentaria um longa-metragem?
O Relatório Minoritário (The Minority Report) foi base para Minority Report – A Nova Lei (Minority Report), que Steven Spielberg dirigiu em 2002. Publicado em 1956, este conto nos mostra um sistema de prevenção de crimes muito eficiente, já que utiliza paranormais videntes – os precogs – cujos dados resultam em prisões antes que os assassinatos sejam cometidos. Apenas isso já garante uma discussão ética fantástica, mas o que move a trama é o nome de John Anderton, chefe da divisão Pré-Crime, aparecer em uma destas previsões, sem sequer desconfiar por qual motivo mataria alguém que nem conhece ainda.
Longe de ser apenas o clichê da “corrida contra o tempo para provar a inocência “, Anderton precisa entender se há uma conspiração em curso e quais variáveis entraram neste jogo, truncando os dados dos precogs, o que o faz questionar todo o sistema que ajudou a criar. Quem acaba questionando a filosofia deste futuro somos nós, após o final deste vaticínio muito bem disfarçado.
O Pagamento (Paycheck), publicado em 1953, teve uma adaptação homônima em 2003, comandada por John Woo. Na história original, o técnico Jennings acaba de sair de um contrato lucrativo de dois anos, cuja condição era apagar suas memórias do período. Ao receber seu pagamento, percebe que ele mesmo deixou instruções para que ficasse apenas com um conjunto de objetos, aparentemente, aleatório e sem valor. Sem entender quais motivos ele poderia ter para essas escolhas, ou o fato da polícia procura-lo, suas investigações vão revelando a natureza do trabalho que realizou durante o tempo que não se lembra.
O jogo corporativo, a perda de memória e o valor relativo de coisas pequenas, como um arame ou um passe de ônibus, dão o tom desta narrativa que prende logo de cara pela surpresa, sem decepcionar ao entregar a solução.
O Homem Dourado (The Golden Man) ganhou sua adaptação em 2007, dirigida por Lee Tamahori, chamada O Vidente (Next). Os leitores dos quadrinhos dos X-Men encontrarão conceitos familiares neste conto de 1954. Neste futuro, o mundo teme e persegue mutantes que começaram a nascer em famílias comuns, criminalizando qualquer abrigo que lhes seja oferecido sem que o órgão do governo seja avisado. Famílias que tentam esconde-los sofrem as consequências, algo que os Johnsons vem fazendo com um de seus filhos, Cris, que se destaca entre os especiais pelo seu tamanho e por parecer-se com uma estátua dourada. Depois de capturado, os responsáveis tentam entender a natureza de seus poderes, já que ele consegue antecipar qualquer ataque desferido contra ele, movendo-se em super velocidade.
Novamente, uma história que lida com uma evolução que incomoda e assusta a humanidade. Qual o verdadeiro motivo por trás desta resistência do homem para aceitar esta nova espécie? Evitando o maniqueísmo, Philip K. Dick deixa esta incógnita – além da natureza deste homem dourado – para que o leitor reflita a respeito.
Equipe de Ajuste (Adjustment Team) foi publicado em 1954 e inspirou a produção de 2011, Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau), dirigida por George Nolfi. Um grupo responsável pelo trabalho de colocar as pessoas onde deveriam estar em determinado momento, assim ajustando a realidade e o curso que as coisas deveriam seguir, parece ter algo de engraçado e irônico. Isso mesmo! Aqui temos o conto mais descontraído da coletânea, mostrando o atrasado Ed Fletcher chegando ao seu trabalho no exato momento do arranjo, testemunhando a cena mais estranha de sua vida, e tudo graças ao erro de um cachorro falante, um estranho funcionário da equipe de ajuste.
Divertido e criativo, finaliza bem a sequencia de contos, demonstrando que o escritor também tinha senso de humor e podia, ocasionalmente, relaxar um pouco em cima de suas próprias preocupações características.
Para quem nunca leu Philip K. Dick, Realidades Adaptadas é uma oportunidade de ouro para conhecer e entender o tipo de trabalho que ele realizava, singular até mesmo dentro da ficção científica. Para quem já o conhece, e admira, também vale a aquisição deste volume pelo conceito da organização. O futuro, segundo ele, é caótico, paranoico, pessimista e – acima de tudo – incerto, em todos os sentidos que o termo possa abranger, mas é exatamente isso que nos atrai e obriga a olhar melhor para o presente.