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Os Negros Anos-Luz – Civilização é um conceito relativo!

Os Negros Anos-Luz

O primeiro contato da humanidade com uma inteligência extraterrestre é uma situação recorrente na literatura de ficção científica, abordada das mais diversas formas. Alienígenas de todos os tipos já foram concebidos por inúmeros autores, entre alguns com uma conveniente forma humanoide e outros que nem se revelam durante a história, preferindo uma relação menos direta. Há também aqueles monstruosos pelos nossos padrões estéticos, mas todas essas narrativas carregam a curiosidade inerente ao ser humano, sobre o que existe pelo espaço fora do nosso alcance e aquela velha pergunta: estamos sozinhos no Universo? Os Negros Anos-Luz (The Dark Light-Years), do autor inglês Brian Aldiss, é precisamente sobre isso, nos fazendo refletir sobre nossa condição de humanos.

Publicada originalmente em 1964, a obra mantém sua relevância mesmo após tanto tempo. Sobre as respostas para as perguntas do primeiro parágrafo, vamos lembrar que elas não tinham o mesmo peso na Antiguidade, quando o geocentrismo – modelo cosmológico que colocava a Terra como centro do Universo – era aceito, servindo depois aos dogmas religiosos. É evidente que esse tipo de pensamento, chancelado pela Igreja, complementava a crença do devoto que se acreditava criado à imagem e semelhança de um ser todo-poderoso. Faltaria espaço para comentar as consequências da arrogância decorrente deste raciocínio, mas gostamos de acreditar que isso é passado e que hoje o homem não se vê como tão especial, não é?

Realmente, mas todos os nossos princípios de civilização entram em xeque com o texto de Brian Aldiss, que tem o devastador poder questionador da boa ficção científica, conseguindo até transcender o campo das ideias, característico deste tipo de literatura, e alcançar o dos sentimentos. Por volta do ano de 2035, uma combalida Inglaterra vem perdendo a guerra contra o Brasil, durante uma época em que a exploração espacial já é algo comum. Em uma dessas viagens, a tripulação de uma nave em atividades de rotina faz uma descoberta sem precedentes. É encontrada a primeira espécie complexa fora da Terra: os Utods, seres que os humanos não demoraram a classificar como meros animais, já que sua aparência e comportamento sugerem exatamente isso.

Os Negros Anos-Luz

Brian Aldiss

Graças a Bruce Ainson, ocupando o cargo de Mestre-Explorador, que lembra o papel dos antigos naturalistas, o único que admite a possibilidade de inteligência deles, dois espécimes são levados à Terra. Não se trata de um mistério no ar sobre quem está certo na suposição, deixando o leitor na dúvida até o fim. Os Utods, apesar de lembrarem hipopótamos – em um sentido bem genérico – com vários orifícios corporais e seis membros retráteis, são realmente inteligentes e possuem uma cultura rica. Nas primeiras páginas, já temos um contato próximo com alguns desta raça, que não são encontrados em seu planeta de origem, pois também viajaram até o mesmo local em uma nave própria.

Na Terra, a dificuldade de comunicação, até pelo mecanismo de fala dos alienígenas ser muito mais complexo que nossas cordas vocais, é mais um empecilho, além da serena falta de interesse deles em colaborar, mas o que mais choca o “bom senso” britânico é que esses seres tem o hábito de viver na sujeira, rolando sobre os próprios excrementos, prática que o leitor do livro compreende acompanhando os diálogos e pensamentos deles, mas deixa os personagens terráqueos cada vez mais convictos de que uma raça inteligente e “civilizada” jamais agiria assim. Eis um tipo de intransigência humana que não pareceria estranha hoje em dia, na vida real.

A maior ironia se revela em um diálogo, onde alguém propõe a outro um questionamento sobre o conceito de civilização aplicado, no sentido de defender a existência de uma cultura dos cativos. O interlocutor rejeita a reflexão, afinal, a raça humana só pode ser civilizada, já que conseguiu transferir seus campos de batalha para outros planetas, poupando a área da Terra, já muito castigada por outras batalhas. Aliás, não demora para que uma característica peculiar dos alienígenas seja pesquisada com propósitos bélicos.

Saindo desta esfera mais ligada aos conflitos internacionais armados, algo que fazia sentido em tempos de Guerra Fria e, assustadoramente, continua fazendo agora, o que acontece no mundo de Os Negros Anos-Luz é um tipo de negação que traz o geocentrismo de volta. Não no sentido astronômico, mas na crença da humanidade como algo especial na vastidão do universo. A falta de visão destas pessoas, em sequer considerar algum tipo de desenvolvimento evolucionário e cultural diverso, é um tipo de radicalismo bem semelhante aos dos nossos tempos.

Os Negros Anos-Luz

Em um mercado editorial decente, livros como esse ganham várias edições!

Sobre os personagens, a sinopse apresentada pode dar a entender que Bruce Ainson serviria como protagonista desta trama, mas o autor faz questão de não conceder essa condição a nenhum de seus personagens, mesmo que ele ainda encontre espaço para desenvolver alguns, cujo destino é inesperado neste cenário. Isso inclui o próprio Ainson, cuja relação com esposa e filho, este mais importante ainda, acrescenta substância a essa história melancólica, aumentando seu escopo.

Conferir sentimento a uma genuína ficção científica é uma raridade, ainda mais em se tratando de um livro curto. Não é exagero dizer que o Aldiss conseguiu uma proeza aqui, fazendo o leitor importar-se com o destino destes seres tão tranquilos em relação ao que acontecerá em seguida, sem perder o foco filosófico do gênero. É uma verdadeira aula em termos de ir direto ao que interessa, sem subestimar seu público em momento algum.

O livro, esgotado há anos, foi lançado por aqui pela editora Cultrix. Caso haja interesse pela edição nacional, será preciso recorrer ao bom e velho mercado de usados, mas ainda é relativamente fácil encontrar.  O problema desta edição em especial é sua tradução corrida e uma revisão ausente, que, se não chega a irritar, incomoda bastante pelo descaso com um material deste calibre. De qualquer forma, é uma vergonha que um autor como Brian Aldiss, nascido em 1925 e autor do conto que deu origem ao filme A. I. : Inteligência Artificial (também fora de catálogo), uma figura importante dentro da New Wave britânica e colaborador da lendária publicação New Worlds, não tenha nenhum trabalho editado atualmente.

Apesar dos inconvenientes do nosso mercado editorial, Os Negros Anos-Luz merece ser procurado, lido e discutido, principalmente por tocar em algumas questões que continuam pertinentes, mais de cinco décadas depois. Essa é a marca das grandes obras, que ainda tem o que dizer ao leitor moderno, mesmo que seja através de seres que se relacionam de forma diferente com seus próprios excrementos.

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