Qual o poder do conhecimento? Que perigos e forças ele esconde? Afinal, ele é uma riqueza superior ao dinheiro que deve ser buscada incansavelmente, ou a ignorância é realmente a maior das bênçãos?
Uma das mais importantes obras da literatura universal contemporânea – seus mais de 30 anos de publicação não o envelheceram um segundo sequer, muito ao contrário – O Nome da Rosa (Ed. Record) foi o romance de estreia do intelectual italiano Umberto Eco, que obteve aqui a consolidação do respeito e da fama internacional que já vinha garimpando gradativamente em publicações audaciosas sobre a complexidade e potencialidades dos meios de comunicação, além do papel deles na vida das pessoas, tanto em seu caráter privado quanto coletivo.
Filósofo, comunicólogo, semiólogo, linguista e leitor voraz, Umberto Eco -nascido em 1937 – é um dos maiores pensadores do nosso tempo. Sem ser hermético ou prolixo em nenhum dos seus trabalhos, Eco surpreende ao refletir como a manipulação e as diferentes formas de circulação da informação através do tempo moldaram a humanidade em todas as suas formas de relacionamento, incluindo nesse meio a política, a religião, a economia, a competição e o entretenimento. Não pense, entretanto, que se trata de um acadêmico pesado, com escrita arrastada e linguagem pesadamente intelectualizada. Eco é também um romancista brilhante, acessível a qualquer público, independente da capacidade de interpretar as entrelinhas.
Publicado em 1980, O Nome da Rosa é o exemplo máximo dessa mistura de reflexão filosófica e entretenimento fantástico. A história por si só, já desperta interesse da mais variada leva de leitores: idade média, século XIV. Em um imenso mosteiro franciscano isolado no interior da Itália, às vésperas de um importante e controverso congresso religioso, uma série de misteriosas mortes assustam os monges do local. Em menos de uma semana, assassinatos em sequencia, sem ligação óbvia entre si, abalam os religiosos cujas únicas referências de mundo são as lembranças do passado remoto e as informações que recebem dos textos bíblicos e dos superiores.
Entre os monges que chegam para participar do conclave está William de Baskerville, acompanhado do jovem noviço Adso de Melk, para o qual cumpre papel de preceptor como era costume à época. William se propõe a investigar os crimes, através de métodos pouco ortodoxos para os monges e até ofensivos para eles: técnicas de científicas de análise e dedução. Uma heresia para aqueles que contavam apenas com a fé para trazer a verdade à luz (ou seria para mantê-la nas sombras?). Adso é o narrador da história. Já na idade madura, ele conta, passo a passo, as impressões e o andamento das investigações, sem deixar de expor uma crítica análise dos fatos paralelos que parecem estar ligados (ou não) à trama principal. Aqui temos a clássica estrutura do romance policial. Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Gaston Leroux e Agatha Christie, entre tantos outros, já exploraram com muito sucesso a receita do amigo-narrador nas histórias de detetive que tanto deleitavam leitores mundo afora. Mas não se prenda nesta impressão meramente superficial! O artifício é intencional, funcionando apenas como cortina de fumaça para uma narrativa muito mais complexa, apenas uma das muitas alegorias que Eco usa para questionar as formas de como as informações são repassadas mundo afora. Claro, os amantes da literatura policial tem um bônus, pois vão em encontrar em William de Baskerville uma deliciosa homenagem a Auguste Dupin, Sherlock Holmes e Hercule Poirot.
As primeiras investigações de Willian levam-no a perceber que está diante de crimes extremamente complexos, indubitavelmente interligados, cuja chave para a solução parece estar no mais importante e restrito local do mosteiro – e talvez de toda Itália: a biblioteca da abadia. Com centenas de milhares de livros, a biblioteca guarda relíquias de épocas anteriores a Cristo, muitas delas que a Igreja gostaria de manter longe dos olhos do mundo, sem, contudo, destruí-las como de praxe. Ao local, apenas o bibliotecário tem acesso, que mantém um rigoroso controle do que pode ou não ser consultado. Para reforçar ainda mais a segurança em cima das obras, o prédio é construído em formato de labirinto que ninguém, além do citado bibliotecário, sabe interpretar.
A biblioteca é o cenário mais complexo e interessante de toda a história. Funciona não apenas como alegoria ao controle excessivo da informação, seja pela Igreja, pela indústria ou pelo governo, mas também como uma homenagem aos livros e ao poder do conhecimento. Leitores mais intensos encontrarão referências a diversos outros escritores e expoentes do conhecimento no século XX.
Paralelamente ao mistério central, em meio às subtramas da obra, dois aspectos devem chamar a atenção do leitor. O primeiro deles é complexidade humana da comunidade que se formou no interior do mosteiro. Os monges, que a princípio se esforçam para mostrar uma sociedade voltada para fé e para dogmas da religião, afeitos aos votos de resignação, se mostram seres humanos falhos, que se entregam continuamente à promiscuidade,avareza, ambição desmedida, inveja, ao ódio e todas aquelas fraquezas humanas que se convencionou chamar de pecado – ou pecados capitais, nos exemplos citados. Eco usa dessa estratégia não para questionar uma suposta hipocrisia da Igreja – que ele o faz de outras formas – mas para refletir sobre a angústia e o mal que aflige o homem mergulhado no direcionamento informativo, na rigidez do controle cultural e as graves consequências desses fatos em uma sociedade, por mais fechada que ela seja. Ninguém passa incólume a esse ambiente, nem mesmo os personagens principais.
O segundo aspecto é o já referido congresso religioso, que acontece no mosteiro em meio à série de assassinatos. Conduzido na forma de um conclave, o evento buscava debater, inicialmente, como a Igreja deveria conduzir as riquezas que acumulou por séculos. Mas as discussões acabam se concentrando em temas aparentemente muito mais prosaicos, como a dúvida se Jesus Cristo riu ou não alguma vez ao longo de sua vida terrena. No livro, muitas páginas são dedicadas a debates filosóficos sobre a questão, que para alguns era o mesmo que discutir a divisão entre o caráter divino e humano de Jesus. O tema opõe Willian de Baskerville, um racionalista à frente de seu tempo, e Jorge de Burgos, um abade cego que defende uma leitura extremamente conservadora dos textos bíblicos. As discussões se ampliam para diversos outros aspectos que renderiam uma resenha a parte. O que surpreende aqui é a genialidade de Umberto Eco em expor temas que atingem pessoas em todo mundo, mesmo que jamais tenham refletido sobre ela, como a separação entre a razão e o místico, além das diversas interpretações do que pode ser entendido como verdade e os efeitos desta no mundo.
O Nome da Rosa é um calhamaço com mais de 600 páginas, mas o ritmo leve que cresce em intensidade torna a leitura extremamente prazerosa. Toda a história se passa em apenas sete dias, que formam os capítulos principais da obra, divididos nas diferentes etapas da rotina diária de um franciscano. O recurso foi inteligentemente adotado por Eco para mostrar o peso do tempo, em uma época em que a única forma de cronometrar a vida era através do ciclo de atividades diárias. Esse formato também tem uma forte influência na interpretação dos acontecimentos, pois o tempo deles parece passar muito mais devagar do que de fato ocorreram.
O conhecimento e o controle deste como umas das mais eficientes formas de poder (poder de construção, manutenção e destruição, é bom frisar), a frivolidade do racionalismo em meio a obstinação obsessiva, a fragilidade do homem desprovido da própria identidade (acessível apenas através do saber) e a inutilidade das discussões sobre a verdade são apenas algumas das muitas interpretações encontradas nesta obra monumental. Caso prefira, o leitor terá em mãos uma intrigante obra de mistério, mas será impossível que ele não perceba, por mínimo que seja, a magnificência das questões paralelas. As perguntas que abrem esse artigo não chegam a ser respondidas, como deve ser em qualquer reflexão inteligente, nem são as úbicas que intrigarão o leitor. É o que faz de O Nome da Rosa uma obra única e universal.
O Filme
Em 1986, o diretor francês Jean-Jacques Annaud (Sete Anos no Tibet), lançou a versão cinematográfica homônima de O Nome da Rosa. A produção franco-italiana/alemã traz um elenco primoroso, encabeçado por Sean Connery no papel de William de Baskerville e o jovem Christian Slater, como Adso de Melk. O filme também conta com uma rica reconstituição de época, com destaque para figurino, fotografia e direção de arte que resgatam com eficiência o clima lúgubre e frio de um mosteiro isolado na Itália medieval.
Como acontece em quase todas as adaptações de livros para o cinema, para se apreciar o filme deve-se isolá-lo do livro. O longa-metragem é uma excelente diversão cinematográfica, embora com algumas restrições. Traz atuações competentes, mas nem de longe a melhor da carreira de Connery. O grande trunfo fica por conta da eficiente ambientação de época como complemento para o tenso clima de mistério. Quem nunca leu o livro pode ter aqui um filme de cabeceira, presente na lista de favoritos de muita gente. Quem leu, pode se decepcionar não pela qualidade da adaptação em si, mas pelas limitações que o formato cinematográfico impõe. A começar, pela superficialidade como que a subtramas são tratadas, sem aquele detalhamento que faz o leitor mergulhar no mundo deste ou daquele personagem. Dois exemplos estão no bizarro pacto demoníaco feito por um dos monges e as fraquezas carnais de Adso, que o fazem por sua fé em cheque, ambas situações que ganham presença decepcionante na tela grande, quando comparadas com o aprofundamento das páginas.
Outro aspecto que pode irritar os leitores está no ritmo da história. No livro, enquanto os assassinatos e outros acontecimentos principais levam dezenas, às vezes centenas, de páginas para acontecer (em tempo: isso não torna o livro chato de forma alguma), no filme eles se atropelam em poucos minutos, perdendo o impacto da surpresa que o leitor recebe. Até mesmo o desfecho do mistério, que no livro é surpreendente, sua adaptação acaba ficando em um óbvio mal trabalhado.
A versão cinematográfica de O Nome da Rosa pode não ser uma obra-prima, mas é filme digno do renome que alcançou pelo esmero em que foi construído. Agrada, sobretudo, os fãs de filmes sobre a idade média, que curtem obras clássicas no imaginário como O Feitiço de Áquila (1985) e Hobin Hood – Príncipe dos Ladrões (1991). Se você não leu o livro, divirta-se com o filme. Se leu, isole-o completamente, se possível, e veja a película como obra única. Você não chegará perto da reflexão proposta por Eco, mas a diversão estará garantida.