Pesquisador Steven Shaviro questiona modelo lacaniano de análise de filmes em O Corpo Cinemático
Teóricos como David Bordwell e a dupla Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, responsáveis pelas principais análises do cinema moderno, sempre se valeram de elementos interdisciplinares para realizarem seus trabalhos. Estudar um filme não exige simplesmente um conhecimento da teoria da montagem ou da linguagem cinematográfica, mas também uma boa dose de estudos sobre filosofia e psicologia. Inúmeras são as citações ao psicanalista Jacques Lacan e seus estudos sobre o comportamento humano em trabalhos voltados para a área do cinema. Porém, o pesquisador e crítico norte-americano Steve Shaviro não se deu por satisfeito com Lacan e resolveu propor uma nova forma de analisar os corpos e suas motivações na Sétima Arte em O Corpo Cinemático (The Cinematic Body).
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Lançado no Brasil em 2015 pela editora Paulus, integrando a coleção Filosofia e Comunicação, o livro de Shaviro discorre, por mais de 300 páginas, novas abordagens sobre questões como a construção da masculinidade e a estética do masoquismo por meio do cinema. Apesar de ter como base a chamada teoria pós-estruturalista de Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Corpo Cinemático se mantém firme na sua proposta de evitar vícios acadêmicos. Nas palavras do próprio autor, no prefácio, o livro está mais próximo das emoções simples do que das avaliações criteriosas. A ideia é apresentar uma percepção plenamente pós-moderna sobre filmes que, até então, pareciam ter tido todas as suas facetas reveladas por estudiosos e críticos de cinema.
Já no primeiro capítulo, Shaviro escolhe uma das produções policiais mais interessantes do final dos anos 80 para falar sobre fascinação visual. Jogo Perverso, dirigido por Kathryn Bigelow (de Detroit em Rebelião) e protagonizado por Jamie Lee Curtis (de Halloween), flerta com o cinema noir para contar a história de uma policial que se vê diante de um psicopata. Logo ela, que parecia identificar de longe o perigo, se envolve com um homem que tem adoração por armas e por mulheres que as portam. As teorias do domínio sádico e da castração, que seriam a primeira opção de quem quisesse investigar os personagens de Jogo Perverso, são questionadas em cada parágrafo, colocando o leitor para pensar que é possível um novo olhar sobre um tema que parece batido.
(Confira também nosso vídeo comentando livros teóricos sobre Cinema)
Zumbis, Jerry Lewis e outros corpos
O Corpo Cinemático pode não agradar quem tem Lacan e Freud como guias na hora de analisar o comportamento dos personagens ou mesmo as escolhas imagéticas de um diretor. Isso porque Shaviro não deixa de citar e explorar suas propostas, mas sempre mantendo os pés no chão e as mãos agarradas em outros pensadores e até em seu próprio instinto. Para o autor, nem tudo é explicado pela obsessão pelo falo ou neuroses encarceradas.É possível enxergar nos zumbis de A Noite dos Mortos-Vivos, do mestre George Romero, e no humor físico do comediante Jerry Lewis, muito mais que uma crítica social ou a exacerbação dos desejos humanos.
O foco central são filmes mais atuais, mas O Corpo Cinemático não esquece do clássico Querelle, talvez o filme mais discutido do cineasta Rainer Werner Fassbinder. A trama, que aborda um relacionamento homossexual de maneira poética, porém bastante realista, é um prato cheio para Shaviro nos colocar para observar com outras lentes o jogo erótico das cenas, a construção do masculino e os corpos como centro do espetáculo visual. E segue na mesma proposta de desconstruir e remontar outras abordagens sobre as cores e as performances nos filmes de Andy Warhol e Robert Bresson.
Por se encaixar na categoria de livro técnico, talvez O Corpo Cinemático crie uma boa camada de poeira nas estantes das livrarias. Nem sempre quem quer ler sobre cinema está disposto a mergulhar em algo que vá além da simples opinião ou da análise das imagens sem entendê-las em um contexto de tempo e espaço, ideia e resultado. Mas bastam algumas linhas para perceber que o autor segue à risca sua proposta de fugir das manias acadêmicas, inclusive no estilo de escrita. São frases leves, mesmo quando responsáveis por trazerem informações intensas, que vão colocar em jogo o que entendíamos como certeiro no aparente simples ato de assistir um filme. O espectador colabora não apenas com sua bagagem cultural na percepção das imagens, mas como parte da história, um voyeur do qual o cineasta pode se valer para trazer novas camadas para sua criação.
Seja você um cinéfilo incurável ou um aprendiz disposto a não ser apenas mais um espectador, O Corpo Cinemático pode ser uma boa porta de entrada para os primeiros ensaios de análise fílmica. Só não procure respostas em suas páginas: o que interessa aqui é infestar nossas mentes de perguntas. Uma proposta que assusta muita gente, mas que é só diversão depois que se aprende a brincar com os pontos de interrogação.