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O Colecionador – Amor confundido com crime!

Quase 60 anos depois, O Colecionador ainda é a epítome sobre perda da inocência através do cárcere de John Fowles

Avaliando friamente O Colecionador, eu poderia chamá-lo de extenuante, pesado, imoral e condenável, para dizer o mínimo, mas é uma obra incrivelmente necessária e belíssima de ser lida desde 1963, sua data de estreia. John Fowles foi e ainda é um objeto de estudo literário até os dias de hoje.

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Resenha de O Colecionador

A sinopse: Frederick Clegg está apaixonado por Miranda Grey e sente que tudo o que ele sente precisar é se apresentar a ela e ter um tempo para mostrar suas qualidades. Já Miranda Grey é uma mulher vívida, com planos e sonhos. Tudo muda quando conhece Frederick Clegg, o homem que a sequestra, mantendo-a em cativeiro enquanto lhe jura amor eterno. Sempre amarrada, limitada a um porão e à mercê de um homem doentio. E ela irá até às últimas consequências para escapar dele.

O livro é um thriller/drama escrito na forma de Narrador-Personagem, onde quem conta a história é o protagonista. No caso, o papel é dividido entre Miranda e Frederick. Nesta proposta, existem três macro-capítulos subdivididos em micro-capítulos e com duas linhas narrativas específicas: A primeira é a do sequestrador e sua obsessão pela vítima e a segunda é a de Miranda e seu desespero com a situação que vive. Esta construção é em formato não-linear, onde a história avança até determinado ponto e depois retorna ao início sob outra ótica para melhor desenvolvimento do conflito, dando espaço para o contraditório e auto-contraditório. Com este método, calcado no Realismo, o autor também flerta com a desconstrução do Simbolismo em algumas de suas características como: Negação do realismo e naturalismo, sensualidade (feminina), subjetivismo e sublimação.  Apesar disso, há a valorização do eu-imaginário, ainda que, de forma periférica, Fowles brinque com este elemento ao apelar para a maneira que Frederick se enxerga diante do mundo.

O caráter duvidoso da história é proposital. Fowles primeiramente busca dar ao leitor um panorama geral de quem é Frederick (Ou Caliban, como Miranda o chama a determinado ponto, em referência à A Tempestade, de William Shakespeare), um aprofundamento geral de sua psiquê e nuances. O autor é assumidamente paulatino durante o desenvolvimento do protagonista, inicialmente burro, desinteressante e pedante, sendo esta uma decisão que faz toda a diferença, positivamente falando. A aparente falta de pressa do autor faz do leitor mais do que uma testemunha ocular de tudo o que o sequestrador faz para Miranda, mas conhecer outras facetas coloca-nos no papel dicotômico de refutá-lo socialmente, ao mesmo tempo que compreendemos sua mente e ideais. Neste aspecto, há claras referências ao Determinismo (Sobre causas e efeitos e sua regências no destino de uma pessoa) como ponto de humanização e algumas mais sutis ao Arcadismo (Bucolismo, Carpe diem e Aurea Mediocritas) na representação de caráter. Não há uma tentativa de justificar o vilão, mas há explicação de que um homem é fruto do seu meio, um triste resultado de erros tantos dos outros quanto da própria convicção de certo e errado.

Nitidamente, a ideia de Fowles em causar uma confusão moral no leitor não apenas funciona, mas como transcende na idealização inicial de Miranda, pois a primeira narrativa, pelos olhos de Fredrerick, é serviçal na busca de torná-la apaixonante aos olhos do leitor, seja pela sua vivacidade, garra e espinha ereta a qual ela enfrenta seu algoz. Há também um pouco de manipulação honesta para que a sua subserviência seja vista como quase romantismo aos olhos menos atentos. Apesar de ser um elemento mais polêmico, enriquece o conteúdo com armadilhas aos incautos.

Assim, quando o ponto de vista dela desabrocha, o olhar da personagem assusta tanto pelo próprio apavoramento do cárcere, ao vê-la se aproximando perigosamente da Síndrome de Estocolmo (onde a vítima cria vínculos afetivos com o criminoso), o desmembramento sistemático da visão do leitor sobre a sua “amável persona” e como ela vai se tornando oblíqua durante seu desenvolvimento. Fazê-la considerar a possibilidade de se alquebrar de tantas formas para que receba a liberdade hipotética e fantasiosa causa repulsa, mesmo que seja compreensível.

Outro efeito na tentativa da personagem são as digressões utilizadas para contar sua história antes do sequestro — e assim dar uma outra visão a que Frederick enquanto a stalkeava — também utilizada como válvula de escape à própria realidade forçada. A metáfora de seu passado contrastando com o presente e possibilidade do futuro é de uma vida roubada. E nisto há também valia. Se Fredrick a rebaixa de dentro de um porão, ela já se rebaixava antes a outro homem pelo desejo de unir paixão à aceitação. Esta digressão utilizada em forma de linguagem minimalista dentro do desenvolvimento principal é multicamadas e expansivo à mitologia da personagem (NOTA DO CRÍTICO: Se você gosta de livros onde a narrativa seja usada como um “personagem” à parte e função da história, leia Cormac McCarthy, e suas escritas inteiramente em Discurso Livre Indireto, abusando de períodos gramaticais longos e com histórias densas e altamente imersivas). E oras, não haveria em Miranda, com essa busca incessante, a base para um pouco de ser Caliban também?

É possível tal interpretação ao avaliar o papel de G.P. no livro, afinal, Miranda, no papel de um platonismo ativo pelo que o personagem não é e numa dificuldade de aceitar o que ele é, acaba soando um pouco como antagonista ao nunca se permitir sair da vida dele de maneira definitiva. E seria errado ter esperança? Encontrar na resiliência o papel da espera é válido? Ser menos pro-ativa a condena? Ainda que hajam essas questões — mas totalmente válidas — , há mais altruísmo, pois ela, entre erros e exageros, consegue ser aberta a um saudosismo e excitabilidade minimamente saudável, ou ao, como consolo, muito menos tóxica do que o extremismo criminoso de Frederick.

Resenha de O Colecionador

Então, a caráter de desenvolvimento, é seguro dizer que ambos os protagonistas são bem desenvolvidos e que existe finalidade dentro de cada um dos acontecimentos. Funcionam como arcos de identidades que servem para mostrar como ambas as personalidades conversam e se digladiam intelectualmente na história. As curvas descendentes de Mirando e Fred são tão impressionantes e paralelas que assombram não apenas a si mesmos mas ao leitor que pouco ou nada os reconhece. A meticulosidade do autor é certeira ao ponto de tornar qualquer detalhe um spoiler, então me aterei ao fato de que a literatura pós-moderna, com todas as suas características auto-regenerativas, realmente transgride neste livro.

A casa de Frederick, onde se passa a trama, tem papel coadjuvante e é incisiva: acolhedora quando necessária e opressiva em momentos-chave. John Fowles é genial na construção imagética da residência com quadros, discos, lareira, banheiro, quartos, porão, anexo e portas reforçadas. Há tanto peso nisto e em seus detalhamentos que torna as raras vezes em que o lado de fora é retratado como elemento libertador e de esperança.

A história também se presta a dar informações sobre a cultura e romantismo inserido em Miranda. Por serem muitas, cito algumas referências de maneira limitada:

  • Artes plásticas: Paul Gauguin, Matthew Smith, Amadeo Modigliani, Feliks Topolski, Georges Braque, Augustus John.
  • Literatura: Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, Grandes Esperanças, de Charles Dickens, Sabado a Noite Domingo de Manhã, de Alan Sillitoe.
  • Artes Cênicas: A Tempestade, de William Shakespare, Major Barbara e Pigmalião/My Fair Lady, de George Bernard Shaw.
  • Música: Bach, Dimitri Shostakovich, Béla Bartók, Thomas Beecham.

Todos estes elementos casam entre si, tornando o final intimista, abraçando a apostasia seguida de uma certa renovação de si e as esperanças, dependendo do ponto de vista. Prepare-se para ler um desfecho que vai te acompanhar por muito tempo ou, quem sabe (assim como acontece comigo), num aparente “para sempre”.

Edição Física

Apesar de tantas qualidades excepcionais, como esmero na capa, fita embutida para marcar páginas, prefácio de Stephen King com spoilers pesados da trama (Ainda que haja um aviso de spoilers em seu início, por favor, pule se puder), glossário de todas as referências da obra, há problemas de ortografia na edição: é o livro que mais achei erros de português e letras faltando. Afeta leituras cuidadosas, existem e saltam aos olhos.Os constantes problemas de revisão nos livros da Editora Darkside ainda são um fantasma a ser totalmente superado.

Isto posto, não apenas recomendo este livro como o indico por toda a sua carga cultural e intensa, digna de longas discussões. Se você não tem, cace-o nas livrarias e se você está com ele parado em sua pilha de livros, o comece logo. Vale cada página como um estudo de personagem, desenvolvimento e consequentemente, da nossa própria mentalidade. O Colecionador não é um livro de fórmulas prontas, fácil ou padronizado no mainstream literário. Num hiper-realismo doloroso e ainda extremamente atual, mostra em alegoria como sentimentos que poderiam ser bons se tornam tóxicos em tons de cinza tão gritantes.

John Fowles nos expõe ao reverberar seus personagens, tanto em Miranda Grey quanto em Frederick Clegg, como nossos próprios fragmentos. Cabe a nós assumirmos isso a nós mesmos e a quem amamos e como levamos essa culpa e suas consequências.

 

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