Sem medo de arriscar, O Céu Que Nos Oprime é um livro com identidade própria
O assunto Nazismo gera, majoritariamente, comoção pelas vítimas e ranço pelos seus carrascos. Em geral há muita pouca humanização dos simpatizantes de Hitler dentro das mídias, afinal, nazistas são inimigos fáceis. Todo mundo odeia esse tipo de gente. Mas, em O Céu Que Nos Oprime, temos uma boa subversão por parte de Christine Leunens.
Como de praxe, à sinopse: O livro fala sobre parte da vida de Johannes Betzler em sua infância e puberdade dedicadas ao Nazismo, onde, após um grave acidente, ele se vê obrigado a largar a Juventude Hitlerista e voltar para casa. Debilitado, desfigurado e melancólico, ele descobre que seus pais estão escondendo uma jovem judia chamada Elsa e o que começa como uma relação de ódio, se torna paixão e devoção.
O Céu Que Nos Oprime foi lançado em pela Bertrand Brasil em 2020 e contém 252 páginas.
OBS: Este livro foi a base de inspiração para a criação do filme Jojo Rabbit do diretor neozelandês Taika Waititi, mas não será falado sobre a adaptação nesta crítica. Porém, caso lhe interesse, o Formiga Elétrica tem o excelente texto de James Salinas e você pode lê-lo clicando AQUI.
Apesar de O Céu Que Nos Oprime ser uma obra narrada em primeira pessoa essencialmente Naturalista, há um nítido interesse da autora no Existencialismo das circunstâncias das ações do protagonista Johannes e de todos os que orbitam sua narrativa. Pais, avós, amigos, Elsa e guerra. Tudo isto é trabalhado por Christine Leunens como o que de fato o é: Onde cada um tem sua parcela de responsabilidade, arcando com as consequências e, principalmente, tendo a liberdade de se definir pelas suas escolhas. Apesar disto parecer determinista demais, flerta-se, majoritariamente, com a aceitação e não tanto com o fardo das consequências em si. Talvez seja este o diferencial do livro para alguns outros do gênero, onde a necessidade de condenar ou justificar certos personagens com temáticas nazistas dê lugar ao ser.
Isto é muito baseado nas vivências que o livro entrega, dando aos responsáveis pelos próprios caminhos também neles um motivo para a suas existências. Evidentemente, este fato se dirige muito mais ao desenvolvimento de Johannes, e pela diluição de sua história em toda a narrativa, fica muito mais difícil de sentir isso de maneira fluída. Talvez o melhor caso a ser exemplificado seja o de Elsa. É a partir dela que Christine Leunens inicia o processo de mudanças de status quo, a partir de determinado ponto da obra. É através da personagem que as maiores evoluções começam e os maiores questionamentos do leitor, ao menos no que tange moralidade, se iniciam. Ela fascina nas entrelinhas e é completamente distante de qualquer tipo de idealização literária. Elsa é imperfeita, muitas vezes má e nitidamente tentando sobreviver, mesmo que isso custe suas verdades.
Leunens pega todos estes elementos e os trabalha de maneira vagarosa, por vezes até demais, num desenvolvimento sem pressa. É visível a vontade da autora em escrever algo muito mais intrínseco e gradual. O tempo passa de maneira subliminar, sendo possível ver essas nuances em poucos momentos em que datas aparecem e focando muito mais em acontecimentos. Johannes vai de criança a adolescente e à fase adulta usando o que se chama de Espaço Físico e o Psicológico (Em tempo: Espaço Físico abraça muito mais o ambiente em que a história passa. Espaço Psicológico, na sensação do ambiente) e nos eventuais amadurecimentos dos personagens principais. Curiosamente, estes pontos que acabei de citar são muito mais referentes ao Realismo do que a qualquer outro que citei até aqui e este é fato interessante pelo seguinte motivo: A autora usa de todos estes elementos para traduzir a passagem da infância para as fases seguintes e assim causar no leitor uma aproximação de um protagonista nazista. Essa obrigatoriedade em acompanhar Johannes mostra que há um mundo afora, pós II Guerra Mundial, que o Nazismo particular do personagem jamais conseguiria sobreviver. A convergência narrativa e textual de Christine Leunens para que suas mensagens funcionem são quase impecáveis, se não fosse o ato de esticar demais a corda dos acontecimentos deveras triviais. Mesmo que estes tenham uma função específica na obra, por vezes a autora perde um pouco da própria mão ao exagerar na dose em que decide tocar nesses pontos. Não deixa de ser interessante, porém de maneira não tão concatenada.
Assim como a autora nos convida a olhar a vida pelo prisma de um nazista apaixonado pelo seu maior inimigo, ela também nos apresenta metáforas e divagações muito funcionais sobre verdade e liberdade. Afinal, melhor viver numa gaiola de mentiras ou ser livre por pouco tempo e morrer com a verdade fora do cativeiro? Isto provoca Johannes, que deliberadamente manipula situações ao confundir amor com cárcere, assim como transcende a própria Elsa, que confunde sobrevivencialismo com medo. Há um Q de Síndrome de Estocolmo na personagem (onde a vítima cria vínculos de afeto com seu carcereiro) e essa complexidade causa no leitor muitas das sensações estranhas que variam entre aceitação até prazer nas dificuldades que o casal enfrenta.
Acertos, erros e ironias
Aliás, imperativo citar que em diversos momentos Leunens parece beber do sarcasmo extremo com um texto que debocha de seus personagens, além da ironia e melancolia com que os desenvolve em algumas micro-histórias até chegar numa comicidade nervosa que não busca fazer o leitor rir, mas transformar o constrangimento num artefato valioso de leitura. Isto é sim, genial. A autora, com estes artifícios, deixa claro a ausência do amor, do companheirismo e da bondade. O que existe em si é muito mais um desespero, a solidão, a necessidade e toda assexualidade infantil que aos poucos vai se tornando o sexo que grita e reclama. E tudo isto é britanicamente hilário, numa tristeza que Leunens mostra que é possível ver graça e um certo lirismo urbano na desgraça alheia. Mais naturalista, impossível, inclusive em seu deficiente final, que, sem maiores spoilers, soa quase incompleto diante de todas as informações que o livro passa durante todas as suas páginas.
Comentei um pouco sobre a monotonia que o livro se detém em alguns momentos, mas talvez a maior causa de problemas seja Johannes. Não que ele seja um personagem ruim, mas para haver uma conexão com o leitor e sua dor, é um trabalho árduo. É possível ler um livro assim, com apego emocional do protagonista quase a zero e ainda assim se entreter com sua história. Este é o caso, mas é plenamente possível que ele possa segregar mais do que agregar ao leitor. Não é um livro para todos por Johannes ser um personagem difícil, fora do escopo do aceitável, mas talvez seja bom que estes elementos sem conexão fácil nos forcem a repensar paradigmas próprios.
Isto posto, O Céu Que Nos Oprime é um livro eficiente nas intenções, com alguns tropeços e ainda assim marcante. Nos remete a um tempo onde tudo era muito mais difícil, simples e com marcas sociais e políticas tão profundas que qualquer problema entre as atuais Esquerda e Direita seja considerado juvenil. Assim, Christine Leunens faz deste livro uma paródia de ode a um pretenso nazista e sua efêmera paz, além do quase inexistente amor ao qual tanto se apega.