Na língua inglesa, o sufixo “-mancer” (em português, seria –mante) é usado para descrever alguém habilidoso na manipulação de um determinado elemento. Neuromancer (idem) poderia se limitar a uma definição e alcance tão simples e breve quanto seu sufixo, mas quando um autor do porte de William Gibson fala da mente humana, podemos nos preparar para um mergulho de cabeça em um fractal simbólico digno de Mandelbrot! Publicado originalmente em 1984 – data fatídica, não? – o livro é considerado o pai da literatura cyberpunk, um dos subgêneros mais populares da ficção-científica. Grande parte dos elementos característicos dessa vertente surgiram, ou se consolidaram, nele .
É sempre complicado, e até mesmo limítrofe, considerarmos uma obra como progenitora absoluta de algo, pois quase sempre o entorno dela – composto por outras artes, panorama sociocultural, etc – acaba fornecendo o adubo necessário para que ela possa florescer. Porém, a obra de Gibson é indiscutivelmente um ponto fora da curva, abrindo novos caminhos para o gênero sci fi e serviu como um telescópio que aponta não para um local no espaço, mas sim para um lugar no futuro.
O livro, que é o primeiro da trilogia do Sprawl, seguido por Count Zero e Mona Lisa Overdrive, conta a história de Case, um ex-hacker que, após tentar roubar de seus contratantes, foi envenenado com uma toxina que o impossibilitou de se conectar à Matrix (ambiente virtual). Para tentar reverter o quadro clínico, ele procura locais clandestinos de medicina em Chiba City, cidade onde acontece a história, gastando todo o dinheiro que lhe restava. Essa busca desesperada pela cura deu certo? É claro que não. Sem emprego, sem capital e drogado, a única saída para esse protagonista caído em desgraça é algo fora do planejamento comum do universo. E é o que acontece quando a personagem Molly aparece e oferece a oportunidade de cura para Case. Mas, obviamente, neste mundo sujo, a última coisa que encontraremos é um bom samaritano.
Neuromancer poderia facilmente se tornar um romance datado que, com o passar dos anos, se tornaria mais e mais obsoleto, fatalmente caindo no esquecimento; problema que atinge diversas obras de ficção-científica que tentam preconizar, de alguma forma, a tecnologia de um futuro próximo. No caso da obra de Gibson, mesmo que tecnologicamente falando existam divergências com o que acabou se concretizando no mundo (o próprio autor comenta essas diferenças no prefácio da edição), sua profundidade conceitual só ficou cada vez mais importante e atual. Pois por mais que a questão tecnológica transborde as páginas da narrativa, tudo é simbólico. De maneira que o significado é muito mais poderoso do que a forma.
O mundo de hoje – e o de amanhã, por que não? – encontra seu reflexo no livro. O céu não é formado pelo chuvisco cinza de uma televisão não sintonizada. Mas refletindo friamente, qual mundo é o mais influente em nossas vidas? O real ou o virtual? Se você acompanha o Formiga Elétrica há algum tempo, lê nossos textos, assiste nossos vídeos e ouve nossos podcasts, sabe muito bem que quando falamos “mundo real”, estamos apenas colocando um ponto de referência e não uma estaca que define uma verdade absoluta.
Quando falamos sobre realidade, temos de estabelecer um referencial. Mesmo que deixemos de lado um pensamento mais filosófico, a própria física de nosso corpo nos mostra a “realidade” de uma forma muito característica, que não reflete necessariamente o que acontece em sua totalidade. Um exemplo claro disso é que só somos capazes de perceber uma parte mínima do espectro eletromagnético, que chamamos de luz visível, mas o restante é ignorado por nós. Temos a necessidade de utilizar a tecnologia para captarmos o restante deste espectro e traduzí-lo em um tipo de informação que seja compreensível ao ser humano. Isso não é moldar a realidade à outra forma? Do mesmo jeito que um computador transforma uma linha de código em outra coisa que faça sentido para nós?
Nessa questão mais conceitual e na própria organização da sociedade, Philip K. Dick (Fluam, Minhas Lágrimas, Disse o Policial e Valis) é uma influência direta para Gibson. Em Neuromancer, toda parte virtual parece um pouco distante do que conhecemos hoje, mas isso só na casca do que é mostrado. Implicitamente, esse mundo ficcional é muito semelhante a este que vivemos e toda sua construção caminha perigosamente na linha tênue virtual/real. Mas haveria uma separação efetiva, ou estamos falando de um amálgama amorfo em constante mudança?
Inúmeras vezes em nosso dia-a-dia, consideramos o virtual tão real que o confundimos com o próprio pilar da realidade. Interpretamos emoções a partir de um texto que lemos, tomamos a versão que mais nos agrada como verdade absoluta, usamos símbolos que representam coisas intangíveis e até acreditamos que um pedaço de papel com o número 50 estampado vale mais que o outro que tem o número 10, mesmo que a quantidade e o tipo de material usado seja o mesmo. A sociedade como conhecemos se construiu e evolui dessa forma desde seus primórdios. O que o universo de Neuromancer faz, é nos mostrar uma versão de qual seria o próximo passo.
É importante falar que o estilo de escrita de Gibson não é dos mais atraentes. Sem muitas explicações prévias, o leitor precisará de atenção e paciência para entender o que está acontecendo, tendo que reler alguns trechos para situar-se de maneira mais clara, algo que torna a leitura mais demorada e desgastante. Felizmente, o conteúdo é tão rico que mesmo o cansaço ou a falta de tempo não são fortes o suficiente para uma desistência. Mas que a narrativa poderia ser mais fluida, isso é fato.
Com relação ao desenvolvimento dos personagens, Neuromancer possui uma caraterística curiosa. Quando os personagens são apresentados, mesmo sendo exóticos como Molly e Armitage, entre outros, já sentimos que os conhecemos de alguma forma. Não importa que as falas e as ações sejam inesperadas pelo leitor, sua função simbólica e arquetípica fazem com que um aprofundamento maior em suas personas não seja tão necessário para o bom andamento da estrutura narrativa.
Neuromancer conseguiu estabelecer os elementos mais significativos do cyberpunk, como o high-tech low-life, que nada mais é do que o antagonismo entre a existência de uma alta tecnologia em meio a um mundo onde a maior parte das pessoas vivem em péssimas condições. Além disso, temos também a característica rebelde (punk) daqueles que estão à margem tanto da casta dominante quanto da dominada, se utilizando dos próprios meios dos opressores (tecnologia – cyber) para destruir sua vitalidade.
Até aqui, creio que você já deve ter feito a relação desses elementos com inúmeras outras obras cinematográficas, literárias, quadrinísticas etc, correto? E, de fato, Neuromancer é mesmo uma influência direta e indireta à cultura, sendo até vencedor da tríplice coroa da ficção-científica com os prêmios Hugo, Nebula e Philip K. Dick.
Não apenas no nome, mas em grande parte dos conceitos e até de estrutura narrativa, o filme Matrix – dos irmão Wachowski – baseia-se muito no mundo criado por Gibson. Além disso, também percebemos os esporos de Neuromancer no DNA do mangá Ghost in the Shell, de Masamune Shirow, que ganhou uma adaptação em longa-metragem animado dirigido por Mamoru Oshii, que aqui no Brasil recebeu o genérico título oitentista de O Fantasma do Futuro.
Neuromancer é o gene dominante do cyberpunk e se disseminou no mundo como um vírus altamente contagioso. Preconizando de maneira contundente muitos elementos do mundo atual e, talvez o de amanhã, a obra de Gibson é um espelho subjetivo da nossa realidade. É sujo, egoísta e ilusório. O virtual nos cerca e tudo a nossa volta é colocado em cheque por meio de várias versões possíveis do que é o real. Voltando às atenções para o sufixo, mancer no título, quem é, afinal de contas, o habilidoso na arte da manipulação dos neurônios? Só sei que os donos destes é que não são.
Já leu nossa análise de A Máquina Diferencial, de William Gibson e Bruce Sterling?