Muitas pessoas têm sua própria concepção sobre o que seria o Inferno, e esta definição vem, em grande parte, diretamente de suas crenças religiosas. Claro que muitas delas são assustadoras, mas é evidente que um temor real desta natureza não atinge uma pessoa cética. No entanto, a narrativa realista e – assustadoramente – visceral de Cormac McCarthy – em Meridiano de Sangue – prova que nenhuma mitologia consegue chocar mais que a própria natureza humana.
Nascido em 1933, o americano de Rhode Island, Cormac McCarthy, é considerado – e merecidamente – um dos autores mais importantes da atualidade. Até hoje o autor produziu nove romances, dentre os quais alguns viraram elogiados filmes, como A Estrada e Onde os Velhos Não Tem Vez (que chegou aos nossos cinemas com o título Onde os Fracos Não Tem Vez).
A sinopse do livro é bem básica. A história acompanha um personagem que não ganhou um nome ao nascer e é apelidado pelo narrador como kid. Já com tendências violentas, o garoto entra em um grupo paramilitar que é chacinado por uma tribo indígena. Sendo um dos únicos sobreviventes do massacre, kid se une a um grupo de mercenários que ganham dinheiro por entregar escalpos de índios para o governo. Um pouco violento até mesmo para John Wayne, não? Mas esta sinopse não é nem um arranhão perto da verdadeira violência retratada na obra, por sinal, em momento algum gratuita. Para o intuito do livro, ela não é apenas necessária, como também é o próprio oxigênio dos personagens.
McCarthy partiu de pesquisas que fez sobre fatos ocorridos no meio do Século XIX na fronteira do Texas com o México envolvendo a “Gangue Glanton”. Liderada por John Joel Glanton, a gangue firmou contratos com governadores de estados mexicanos pelos quais receberiam por cada escalpo indígena entregue. Supõe-se que cada escalpo valeria aproximadamente US$ 100,00. Até então, nada que nos surpreenda. Por mais violento que seja, tais recompensas de fato existiam. A questão em jogo é que como não era possível certificar que os escalpos pertenciam aos índios, muitos deles eram de pessoas que cruzaram o caminho da gangue, sejam elas peregrinos, mulheres, mexicanos, norte-americanos, mendigos e até mesmo crianças.
Por mais que a história comece a ser guiada pelos eventos na vida de kid, ele não é o protagonista. Na verdade, o livro não tem um protagonista. Somos colocados na situação e acompanhamos os acontecimentos em torno do personagem. Este afastamento e falta de empatia se prova muito eficaz, pois quando testemunhamos as (várias) atrocidades, a sensação de impotência é inevitável. Não há como mudar a natureza animalesca daqueles seres humanos. Se houvesse uma empatia maior, provavelmente ficaríamos esperançosos e torcendo para que o protagonista tomasse alguma atitude que acabasse com aquela barbárie, mas com isso o objetivo da obra perderia o sentido. Ali é o Inferno, e no Inferno não há heróis e nem esperança.
O individualismo é outra marca forte. Perturbadoramente forte. Nenhum personagem ali retratado possui afinidades para com o “outro”. Não existe o “outro”. Temos alguns resquícios de amizade, mas todos vivem como se fossem os únicos no mundo e os outros seres humanos e animais são simplesmente objetos. Não há absolutamente nenhum remorso em matar, torturar, esquartejar, afogar e estuprar. Este faroeste de McCarthy mostra o pior do ser humano. Já tivemos um relance disso em A Estrada, mas o Meridiano vai além.
Agora, para todo Inferno, existe um Diabo. E em Meridiano de Sangue, o Diabo é o personagem do juiz Holden. Fisicamente anormal, o juiz tem mais de dois metros de altura e possui alopecia (se caracteriza pela ausência de pêlos no corpo), o que já torna sua imagem mórbida. Intelectualmente, Holden possui diversos conhecimentos que vão desde botânica a antropologia evolucionista, indo de contra ponto com o restante dos personagens retratados, que mal conseguem falar de maneira correta. Através de ideologias distorcidas, representadas muito bem pela fala “A guerra é Deus“, não é à toa que o personagem é comparado a outras figuras como Ahab de Moby Dick, escrito por Herman Melville e o Coronel Kurtz de Coração das Trevas, escrito por Joseph Conrad. Curiosamente, todos figuras de autoridade. Não seria difícil notar traços da personalidade do juiz em alguns líderes da história contemporânea.
O final de Holden também traz uma ideia muito curiosa e que, por mais que pareça destoar de todo o realismo retratado até então, faz um sentido assustadoramente coerente. É o máximo que se pode comentar sem estragar a experiência do leitor, mas – acredite – a surpresa vale a pena. Uma sutileza que muda os parâmetros da visão da obra como um todo.
Cabe observar que a estrutura narrativa não é agradável à primeira vista. A ausência de pontuação, repetição de palavras e vocabulário regional desconhecido podem afastar o leitor que prefere algo mais fluido. Contudo, conforme a leitura avança, embarcamos neste modo de escrita e percebemos o charme e beleza do estilo McCarthiano.
Meridiano de Sangue ou O Rubor Crepuscular no Oeste é uma obra simbolista e visceral. McCarthy apresenta o realismo mais brutal do velho oeste norte-americano, onde homens são demônios, balas são insetos e a areia é o fogo.