Entendendo o fenômeno Mangá
Dependendo da idade do consumidor de quadrinhos, é provável que, em meio à vasta oferta de quadrinhos japoneses no Brasil de hoje, ainda não tenha pensado sobre alguns tópicos relacionados à situação. Lá pelo final da década de 1990, poucas pessoas apostavam que o Mangá, em seu formato original, com ordem de leitura inversa em relação à nossa, pegaria por aqui. Pior ainda, estamos falando de edições que lembram os pouco queridos formatinhos e em preto e branco! Pois é… Muita gente estava errada.
Só essa situação do nosso mercado já valeria um estudo à parte, mas a denominação “fenômeno” não é apenas por conta disso. O florescimento desta indústria de quadrinhos no Japão, com um dinamismo produtivo que alimenta um público eclético e voraz, é um assunto que merece atenção e um olhar mais cuidadoso e técnico. A pesquisadora e professora Sonia Bibe Luyten debruçou sobre esse mundo, cuja tese de doutorado deu origem ao esclarecedor Mangá: O Poder dos Quadrinhos Japoneses.
Lançado originalmente em 1991, pela editora Estação Liberdade, o livro conta hoje com uma edição mais recente pela Hedra. Eis uma obra que interessa não ao mero leitor ocasional de quadrinhos, mas aos que desejam se aprofundar nas raízes de um tipo de arte contemporânea muito peculiar. Lançando um olhar sobre eventos históricos que tornaram o Japão um caso à parte no cenário mundial, a proposta é observar isso de forma paralela com as tendências que formariam as histórias em quadrinhos japonesas.
Foi uma tarefa árdua juntar esses dados históricos e sociológicos para encontrar as causas e efeitos subsequentes da avalanche chamada mangá. A pesquisa ganha tons arqueológicos quando passa pelas origens da caricatura no país, no fim do século VII, que são indicadas como sementes dos quadrinhos nipônicos como os conhecemos hoje. É um longo caminho até os fatos mais recentes, como as bombas de Hiroshima e Nagasaki, que, evidentemente, também deixaram marcas nesta nação e impactaram a produção artística.
Mangá como uma necessária diversão escapista
Muito se especula sobre as vendas de quadrinhos em queda constante nos EUA. Costuma-se culpar a concorrência de novas mídias, o que até parece lógico em um primeiro momento. Porém, chega a ser um paradoxo que o Japão não tenha seu mercado de quadrinhos afetado por isso. Completamente sedimentado na cultura local, o mangá segue com sua produção firme e forte absorvida por um público fiel. Um dos motivos, segundo a pesquisa de Sonia Luyten, está no fardo que cada cidadão japonês carrega.
O milagre econômico de um país devastado e humilhado pela guerra não acontece sem sacrifício e estoicismo. Muitas horas de trabalho e um senso de honra e dever dentro da coletividade cobram seu preço, criando um ambiente que gera neuroses únicas e difíceis de compreender para um ocidental. Essas pessoas precisam de um alívio na forma de um entretenimento barato.
É aí que as coisas diferem radicalmente de outros mercados. A indústria do mangá faz questão de contemplar os tipos mais diversos de leitores. Exatamente por isso é possível encontrar histórias que se passam no mundo do basquete, da culinária e dos escritórios, entre outros ambientes mais ou menos prosaicos, dividindo espaço com tramas mais fantásticas, como as que envolvem samurais ou heroínas de ficção científica. A regra de produzir para crianças e adultos dos mais variados gostos é um ponto que ganha bastante destaque no texto, fundamentando esse sucesso comercial.
Leitura enriquecedora
Mangá: O Poder dos Quadrinhos Japoneses vai direto ao ponto em pouco mais de 200 páginas. Recheado de ilustrações, algumas raras, é uma belíssima oportunidade de ir além do simples consumo e construir uma reflexão sobre uma manifestação artística moderna. É um estudo feito por alguém que conduziu sua pesquisa realmente dentro do contexto em questão, o que faz muita diferença.
O compreensível formato acadêmico do texto é o único detalhe que pode causar algum estranhamento nos leitores. Se acaba comprometendo levemente a fluidez da leitura em alguns momentos, é um deslize relativo e não ofusca a importância do trabalho de Sonia Bibe Luyten.
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