A violência psicológica em O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é o elemento fundamental
Colocar as icônicas Bette Davis e Joan Crawford sob a habilidosa batuta de Robert Aldrich foi um acerto e tanto, dando origem a um dos filmes mais lembrados dos anos finais da Hollywood clássica. O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?) estreou em 1962 e marcou o Cinema de forma indelével, adaptando o livro homônimo de Henry Farrell, lançado dois anos antes. Aliás, o longa metragem já tinha um belíssimo material na fonte.
A DarkSide (Cabo do Medo, A Noite dos Mortos Vivos) fez um favor para os cinéfilos fãs do filme, publicando em um mesmo volume a história em questão, junto com mais três contos do autor. Completam a edição O Que Terá Acontecido à Prima Charlotte? (What Ever Happened to Cousin Charlotte?) – também adaptado às telas com Bette Davis no papel principal*, A Estreia de Larry Richards (The Debut of Larry Richards) e Primeiro, o Ovo (First, The Egg). Com o projeto gráfico primoroso de sempre, o bom trabalho editorial se mantém com uma boa tradução e revisão à altura.
* (Hush… Hush, Sweet Charlotte, de 1964, também de Robert Aldrich. No Brasil, Com a Maldade na Alma)
A sinopse é necessária para quem ainda não assistiu ao filme. Jane Hudson, cujo nome artístico trazia “Baby” no início, foi uma estrela mirim no início do século XX, tornando-se uma celebridade graças às suas bem sucedidas apresentações de canto e dança nos teatros de vaudeville. Mas nossa história tem sua linha narrativa presente cinco décadas depois, quando esse formato de show tornou-se ultrapassado há muito. Alcóolatra e negando sua realidade decadente, ela é responsável por sua irmã mais nova, Blanche, que precisa de cuidados especiais.
Outrora uma famosa atriz de cinema, Blanche é paraplégica como consequência de um acidente de carro. As duas vivem reclusas em uma mansão que reflete o que suas vidas se tornaram, com Jane afogando-se cada vez mais no rancor pelo sucesso da outra e a instabilidade mental, enquanto a outra também se entrega aos seus próprios demônios e cumpre a promessa feita ao seu pai de nunca separar-se de sua irmã. Mesmo com o perigo de maus tratos, cárcere privado e algo muito pior.
Seguindo essa premissa, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? desenvolve uma espiral de eventos que fazem de Jane Hudson uma personagem realmente assustadora. Não apenas por imaginarmos o que ela fará a seguir motivada por uma inveja doentia, mas também por sua figura ser absolutamente digna de piedade, o que alterna os sentimentos do leitor por ela de uma forma desconcertante. No bom sentido, é claro, evidenciando o domínio de Henry Farrell na cadência de reviravoltas que nos mantém presos ao seu texto.
Também existe aqui um conteúdo de crítica, ainda que sutil, à cultura de celebridades. Mais ainda no que se refere à exploração de crianças nesse meio, algo que a própria vida real já nos provou que, quase sempre, deixa sequelas psicológicas graves. Além de mimada muito além da conta, Baby Jane não apenas sofreu com a indiferença das pessoas enquanto deixava a infância. Com seu formato de apresentação antiquado e esquecido, mais a ascensão de Blanche no Cinema, uma mídia que chegou para ficar, a pressão sobre sua frágil e imatura personalidade é forte demais.
Nas próprias descrições de suas protagonistas, o escritor também acerta em cheio, nos obrigando a pintar os retratos mentais que definem um enorme contraste entre elas. Blanche, mantendo alguma dignidade, apesar da deficiência e de seu temperamento indulgente, é diametralmente oposta à irmã, cujo comportamento dissociativo afeta seu vestuário e apresentação pessoal de forma gritante, além de uma falta de cuidado geral consigo mesma.
Construindo habilmente a narrativa, cuja leitura flui maravilhosamente e lembra, de fato, o ritmo de um filme, Farrell também se saiu bem em seu interlúdio para apresentar Edwin Flagg, personagem que atravessa, por acaso, o caminho das duas. Deslocando a ação para outro ambiente, já que usa o recurso do narrador onisciente, a inserção dele soa absolutamente orgânica na trama, além de trazer um pano de fundo muito rico psicologicamente. Ironicamente, depois de uma apresentação interessantíssima, ele acaba subaproveitado no cenário geral, criando aí uma pequena falha no conjunto.
Com apenas esse pequeno deslize, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? brinda seus leitores com uma leitura de primeira, que não desanima em momento algum e termina mais rápido do que se esperaria. Passadas mais de 200 páginas, é preciso também comentar o restante deste belo recheio, com os outros escritos de Henry Farrell.
Os contos que completam a edição
Chegando a O Que Terá Acontecido à Prima Charlotte?, nos deparamos com outra história que envolve atritos familiares e um passado que, quanto mais o tempo passa, parece cada vez melhor. Charlotte Hollis é a herdeira, já em idade avançada, de uma mansão sulista que deve ser desapropriada. Ela se recusa terminantemente a deixar o imóvel, usando métodos agressivos para afastar os operários que chegam para derrubar a casa e outros agentes da prefeitura.
Vivendo com sua enfermeira, que ainda acumula outras funções, essa protagonista ainda amarga uma má fama na cidade. Tudo por conta do mal explicado assassinato de um homem casado, com quem teria se relacionado em sua juventude. O sofrimento e a iminência do despejo faz com que ela recorra a Miriam, sua prima e única parente viva, que volta ao local depois de muitos anos, revivendo antigas mágoas entre elas.
Sem o mesmo brilho de Baby Jane, o conto ainda se segura bem, capturando nossa atenção através de personagens interessantes e o dinamismo narrativo. Os dois seguintes, mais curtos e com estilo de episódios de alguma série de antologia, se destacam um pouco mais pelo seu conceito.
A Estreia de Larry Richards mostra o homem do título, um ator que já conheceu o sucesso no teatro, agora com sua carreira em risco, envolvido em uma produção para a televisão que pode ser sua salvação ou ruína. A preocupação maior, no entanto, é a consciência de que sua vida estará em risco em frente às câmeras. Primeiro, o Ovo traz mais humor, mostrando um explorador, cujo troféu é um ovo encontrado no Polo Norte, agora empregado como consultor de uma produção cinematográfica sobre sua própria aventura. A pergunta, no caso, é: De que tipo de animal é esse ovo?
Uma edição que vale o investimento
Esse volume de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? também conta com um ótimo prefácio que traz detalhes sobre a realização do filme. Os fatores que tornaram essa produção uma realidade, bem como a rivalidade real entre Joan Crawford e Bette Davis, adicionando mais uma camada de tensão à dinâmica entre as personagens, são comentados por Mitch Douglas, agente literário e amigo de Henry Farrell.
Com esse texto principal, mais os três contos, temos aqui um belo apanhado do trabalho do autor, que agora pode ser conferido pelos leitores brasileiros. Se você já viu os filmes de Aldrich e gosta muito deles, é certo que o livro vai interessar. Porém, é mais do que indicado para qualquer um atrás de algo muito bem escrito e cativante.