A Lição de Anatomia do Dr. Louison leva o steampunk para um cenário inusitado – o sul do Brasil
Ao findar desta noite me deparei com um livro em minha estante. Estava quase no fim, porém hoje as engrenagens e a fumaça alçaram um voo diferente… Hoje resolvi findar minha aventura por Porto Alegre dos amantes e deixar que essas páginas de A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison me escorressem por entre os olhos.
O terminei, mas meu sentimento de alegria ao término de uma aventura deu lugar ao sentimento completamente diferente: a lição de como escrever um tomo infernal, onde o terror psicológico, misturado a incoerência de certos personagens, torna a grande Lição de Anatomia não só um livro de suspense retrofuturista, mas em uma releitura dos heróis nacionais com um pouco de tempero blakeano!
Sim, por conta do autor ser Doutor em Literatura, Enéias Tavares consegue adicionar elementos que vão desde os grandes clássicos do terror, aos grandes clássicos da literatura inglesa, em uma ”constante variante” de William Blake e o Mago Supremo Alan Moore – este último, nas palavras do próprio autor, seu escritor predileto – fazendo com que sua influência seja sentida não somente na concepção do Parthenon Místico, mas em todo o mistério e suspense que permeiam as páginas do livro!
Mas o que há de diferente em Lição De Anatomia?
O maior trunfo do livro é sua ambientação. Porto Alegre nem sempre é uma cidade relatada em obras fantásticas, tanto que acredito que o autor deve ter sofrido em algum momento com a sugestão de troca de ambiente, mas nesse momento me pergunto: teria funcionado?
Talvez, mas quando vi o livro nas prateleiras, o que me fez compra-lo – além de sua excelente capa – foi por se passar em uma cidade gaúcha no início do século passado, trazendo não somente a virada do século como pano de fundo, mas também uma revolução industrial totalmente diferente, onde toda a tecnologia ali desenvolvida fora a partir do vapor. Então pense o seguinte incauto leitor deste site, quão maravilhoso seria levantar pela manhã ir até a frente de casa, e ter seu jornal entregue por um autômato?
E se ao pegar seu jornal, você olhasse para o céu e visse um zeppelin silencioso pairando sobre a paisagem de uma Porto Alegre que nunca existiu? Maravilhoso, não? Pois é exatamente isso que o autor transporta para a obra, fazendo com que os gaúchos que leiam as aventuras do Dr. Louison tenham um novo ponto de vista sobre as paisagens da nossa amada capital. Já os que são de fora, farão uma viagem a um novo Rio Grande Do Sul, visto que, através de diversos contos e promessas futuras, iremos ver diferentes regiões, em uma menção* honrosa: minha amada Santa Maria… Mas falaremos dela mais para o final da resenha.
Falei do maior trunfo, mas o que seria de paisagens lindas e exuberantes sem palavras? Aí está outra grande jogada… a grafia. Na minha concepção como escritor iniciante, aquele que consegue dominar o exército de palavras que tem a disposição consegue ir longe… Não é o meu caso atualmente, mas mais uma vez todo o mérito vai para o Enéias, que consegue trazer as palavras da época para as páginas atuais, fazendo com que a imersão à obra seja ainda mais bela, fluente e rica em palavras que ainda existem no nosso vocabulário atual, mas que perderam todo seu charme e riqueza devido a chegada modernidade. Afinal alguém velho sempre tem que cair para algo novo surgir não é mesmo?
Enredo chocante
E agora sim…. O enredo! A batalha mais antiga de todas: bem contra o mal. Não espere que essas páginas tragam uma descrição da sociedade daquela época (espere sim, o momento agora é puramente teatral e místico), não espere donzelas frágeis ou grandes heróis salvadores…. Nada é o que parece em Porto Alegre dos Amantes! Até o mesmo o título altamente sugestivo faz uma bagunça na cabeça do leitor no decorrer da aventura.
Comigo foi assim – entrei em uma espiral literária, pois até o momento a única história que havia surtido um efeito arrasador sobre mim fora As Crônicas de Gelo e Fogo e, consequentemente, sua série pela HBO. Dito isso, eu digo com o maior orgulho: Brasiliana Steampunk tem um final surpreendente para um livro nacional. Elogios a parte, chegamos finalmente nos Senhores e Senhoras da história, personagens que variam entre criações do Enéias e personagens já conhecidos da literatura.
Uma citação especial a Simão Bacamarte, que no primeiro ano do ensino médio me fez questionar a sanidade da minha sala de aula e, como de praxe, a minha também. Mas sim! Todos aqueles personagens que julgávamos chatos e sem noção estão aqui… em uma temática steampunk! Quando me dei conta disso (ao final do livro), eu gritei… Fiquei atônito, pois livros que antes eram uma obrigação, nesse sentido mesmo, agora ocupam um lugar de destaque nas minhas prateleiras.
Não só Simão e seus métodos questionáveis estão presente, mas o trio de senhoras que me fez viajar ao mais profundo desejo carnal estão também, em novo empreendimento: O Palacete dos Prazeres. Ressaltando que, na época, um bordel (ou pelo menos na época de Brasiliana) era um prestigiado lugar, onde não somente vagabundos errantes frequentavam, mas também a nata da sociedade – esta última que contracena diretamente com o Doutor do livro.
O auto intitulado imortal satanista, senhor da taverna, o esguio e assustador Solfieri de Azevedo, também faz umas pontinhas na trama, que são no mínimo muito peculiares, dado ao seu romance com a mais bela e enigmática mulher da literatura, aquela que, para mim, simboliza em imagem e contexto uma pessoa que fora muito especial na minha vida: Vitória Acauã, a índia dos cabelos negros e inocência pura, que com todo seu potencial e poder consegue dar um tom de emponderamento feminino no que diz respeito a jovens presentes em obras literárias, fazendo com que a personagem seja amada e respeitada.
O Doutor Benignus também marca presença, mostrando que a ciência steampunk é algo altamente crível e suas engenhocas retrofuturistas ajudam todos os personagens no decorrer das aventuras, fazendo com que o título de ficção científica brasileira seja digna do personagem. A obra também é permeada por representatividades, e a maior mais poética e romântica que permeiam as páginas são Sérgio Pompeu & Bento Alves. Dois indivíduos que foram separados, seus amores negados, e sua história pausada… até o afortunado reencontro, mais uma vez na bela Porto Alegre dos Amantes, centro de tudo e de todos.
O estripador da perdição
Agora, querido leitor (parabéns para você que chegou até aqui): pode parecer um relato apaixonado e realmente é. Como não se apaixonar por algo assim? Um obra que traz o mais belo cenário gaúcho, somado a personagens tão memoráveis quanto estes que descrevi acima?
Então preparem-se, pois mais uma vez Enéias Tavares consegue realizar a criação de seu próprio panteão, com o Dr. Louison e sua senhora, Beatriz De Almeida e Souza – o casal mais odiável e mais amado. Até entendermos a lição de anatomia do Doutor, em uma primeira instância passamos a nutrir um certo receio e até ódio de Louison e Beatriz.
Por que? Pelo simples fato de Louison ser conhecido como o estripador da perdição, o assassino da nata, tendo como sua cúmplice (mesmo que não seja nada comprovado pela investigação), Beatriz. Não me aprofundarei em detalhes, pois não quero estragar a surpresa… Mas leiam! Pelo amor de Pamu, o Venerável, leiam. Pois somente na leitura dessas páginas é que irão realmente sentir na pele os medos e anseios de Isaías e Britto Cândido.
Ah sim, uma das peças chaves na história: Britto Cândido. Guardem esse nome, pois os diálogos ao final desse livro serão chocantes… para dizer o mínimo! Bem, acredito que não tenha esquecido ninguém – e se esqueci, me digam, pois sites como esse se alimentam de comentários.
Eu falei para vocês que todos os capítulos são em primeira pessoa? Então, vocês conhecerão os devaneios, as importantes cartas e se conectarão muito mais com os personagens. Confesso agora que o que mais me identifiquei foi o próprio Dr. Louison. Por que? Por ser o estripador da perdição!
Curte o tema steampunk? Não deixe de ler nossa resenha para Máquina Diferencial!