Uma premissa de grande potencial em Justiça Ancilar
A ficção científica é um gênero que depende de grandes ideias, um desafio para qualquer autor moderno. Nesse sentido, Justiça Ancilar (Ancillary Justice) é notável, já que seu universo é recheado de conceitos que chamam atenção até do leitor veterano. Impossível negar que se trata de uma construção ambiciosa e atrativa em seus detalhes isolados, no entanto, o conjunto não faz jus ao interessante ponto de partida.
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Publicado no Brasil em 2018 pela Aleph, é o primeiro romance de Ann Leckie, lançado originalmente em 2013. O livro – primeira parte de uma trilogia – nos apresenta o Radch, um império galáctico cujas naves possuem uma peculiaridade marcante. Cada uma é controlada por uma inteligência artificial diferente que se identifica como a própria embarcação, subordinada a oficiais humanos, com a capacidade de ocupar corpos denominados como ancilares. Uma consciência única espalhada em várias pessoas, resumindo.
Uma dessas naves, a Justiça de Toren, é destruída com sua coletividade, deixando como vestígio apenas um ancilar. Breq, agora apenas um organismo individual, vaga pela galáxia há quase duas décadas, preparando sua vingança contra a pessoa responsável por essa condição. Por sinal, trata-se da mesma que lidera o Radch, também capaz de habitar vários corpos simultâneos. É durante essa cruzada que Seivarden, ex-oficial e há muito à margem do império, tem seu caminho cruzado com o de Breq, criando uma aliança improvável.
Neste momento, pode ser que você tenha estranhado que uma IA queira vingança. A autora, felizmente, não deixou isso sem explicação. Justiça Ancilar traz esse conceito como um de seus pontos positivos, pois estabelece bem a emoção dessas consciências dentro de sua lógica interna. Caso fossem dotadas apenas de razão, qualquer problema mais complexo levaria a um sem número de paradoxos que as deixariam sem ação. Com a emoção, a consequente personalidade criada precisa arbitrar para algum caminho, resolvendo o problema de um jeito ou de outro.
O outro lado interessante diz respeito à distinção de gênero no texto. Na língua radchai, não existe essa especificação, deixando o leitor confuso no início. A edição da Aleph traz um prefácio do tradutor Fábio Fernandes explicando a opção, com a permissão de Ann Leckie, por utilizar os pronomes, substantivos e adjetivos sempre no feminino quando entendemos que os personagens falam naquele idioma. Essa regra muda, obviamente, quando Breq dialoga em outra língua.
É uma forma de nos tirar de uma zona de conforto. A narração em primeira pessoa indica quem é macho ou fêmea quando necessário, mas, na maior parte do tempo, nos obriga a ignorar esse quesito. Neste ponto, é difícil não lembrar do clássico A Mão Esquerda da Escuridão (que também ganhou um vídeo), de Usula K. Leguin, ainda que lidasse com essa questão de outra forma.
A comparação é pertinente, mas os méritos de Justiça Ancilar se diluem no cenário geral. Entre inúmeros detalhes, além de idas e vindas, parece uma tentativa de conferir complexidade a uma linha narrativa não tão profunda e que, consequentemente, poderia ser bem mais enxuta.
Uma leitura que não flui
Jogar o leitor em um contexto estranho não é um problema. O prefácio já nos deixa cientes que levaremos algumas páginas para nos acostumar com tudo. Intercalando o presente e passado de Breq/Justiça de Toren, acompanhamos sua busca ao mesmo tempo em que as engrenagens políticas e bélicas deste universo nos são reveladas. A grande quantidade de informações para que montemos esse quadro mental, nos capítulos de flashback, é um fator que prejudica muito o ritmo.
Não apenas isso. Os mais versados neste tipo de literatura já perceberam que essa jornada aproxima o romance da categoria space opera, o que, em tese, privilegiaria a aventura e um desenvolvimento maior de personagens. Com quase 400 páginas, é preciso atravessar o primeiro quarto para que a narrativa entregue algo minimamente envolvente sobre a jornada de Breq. Vencido esse percurso, parece mais fácil avançar nesta leitura, mas uma dúvida natural é se o jogo linguístico de gênero, atrativo no início, está entrelaçado com o conceito geral.
Claro que é possível interpretar que faz todo sentido, já que temos uma IA como protagonista. Por outro lado, se imaginarmos Justiça Ancilar sem essa característica, a impressão é que essa jornada dramática e linha narrativa não perderiam nada. A ideia parecia realmente excepcional no início, mas não se justifica como elemento fundamental e indissociável desta trama.
Além do ritmo irregular, até arrastado em alguns momentos, perto de sua resolução, o livro se torna uma correria que é possível imaginar como um filme barulhento. Algo bem distante do que insinuava em seu início. Com esses problemas, fica difícil torcer para que os objetivos sejam alcançados pelos personagens.
Se os dois livros seguintes são melhores do que esse, importa pouco neste momento. Laureado com todos os prêmios importantes do gênero, Justiça Ancilar tem aí um excelente marketing. Mais uma prova de que tal expediente existe mais para turbinar vendas do que para reconhecer méritos, como já dizia o grande Michael Moorcock. Aliás, nada mais oportuno que citá-lo. Alguém cuja imaginação gigantesca não é nada prejudicada pelo dinamismo narrativo e pela economia de palavras.