Tony Soprano, Nate Fisher, Jimmy McNulty, Vic Mackey, Don Draper e Walter White. Dependendo da sua intimidade com seriados de TV norte-americanos, pode ser que conheça todos esses personagens, mas é certo que o primeiro e o último também serão lembrados por muitos que, por algum motivo, não acompanharam suas sagas. Sem dúvida, isso configura um tipo de fenômeno cultural, surgido em um meio que amargava a pecha de primo pobre do cinema. O conceito inglório foi revisto e virado ao avesso quando um chefão da máfia resolveu frequentar sessões de análise, apresentando um novo tipo de protagonista a um público, até então, acostumado ao marasmo. Assim começa uma era de Homens Difíceis (Difficult Men), título do livro do jornalista Brett Martin.
O trabalho de Martin, publicado originalmente em 2013, se ocupa de radiografar a virada – além dos esforços anteriores – que o meio televisivo sofreu a partir da ousadia da HBO em 1999, apostando na densidade sem concessões de Família Soprano, propondo um ritmo narrativo inspirado nos romances seriados do século XIX. Fazendo jus ao slogan “It’s not TV” , o mesmo canal pago emplacou outras séries de prestígio no mesmo molde dramático, como A Sete Palmos e The Wire. Os concorrentes não ficariam para trás e o público recebeu (muito bem) The Shield, Mad Men e Breaking Bad, essa última já totalmente consciente das possibilidades estéticas agora permitidas. Entre todos esses, se o western Deadwood, cancelado na terceira temporada, foi um revés comercial para a HBO, do ponto de vista artístico foi mais um triunfo.
(Tony Soprano e cia. já foram tema de um Formiga na Tela!)
Qual é a característica comum entre esses respectivos protagonistas citados no primeiro parágrafo, dentro daquilo que o autor chamou de Terceira Era de Ouro da Televisão? São todos anti-heróis, muito distantes de pessoas maravilhosas percorrendo jornadas edificantes. Surgiram em um momento histórico muito específico, assumindo os tormentos comuns à virada do século e o pós-11 de setembro, quando o telespectador se mostra pronto para assimilar uma forte ambiguidade dramatúrgica no conforto de seu lar, aceitando que é capaz de torcer por personagens de moral questionável.
Esses indivíduos da ficção não são os únicos a justificar o título do livro. Martin pintou o retrato deste grupo de showrunners, cargo autocrático que, nestes casos, coube ao criador de cada série – abarcando uma responsabilidade muito maior do que um produtor, roteirista ou diretor – descrevendo homens geniais, mas temperamentais e profundos tanto quanto suas criações. O melhor exemplo do grau de envolvimento entre criador/criatura nesta fase da TV é David Chase/ Tony Soprano, ambos com problemas sérios com suas figuras maternas.
Em menos de 400 páginas, não é abordada apenas a gestação destas séries fantásticas e o relacionamento, muitas vezes problemático, entre showrunner e roteirista. O processo de contratação do elenco, com os criadores brigando por aqueles que viam como perfeitos para encarnar sua visão, bem como o comportamento inconveniente de alguns destes atores, fazem parte dos relatos do livro. Engana-se, no entanto, quem achar que esses detalhes são fofocas inúteis e sensacionalistas apenas para dar volume. Pela quantidade de séries e profissionais citados, o próprio número de páginas já indica que o texto é enxuto e foca naquilo que realmente é importante no cenário geral.
O cinéfilo de carteirinha já deve ter feito um paralelo entre a ousadia destes seriados com uma fase bem específica do cinema, a Nova Hollywood, entre o fim da década de 1960 até 81, mais ou menos. A comparação é válida, já que a época teve personagens similares de ambos os lados das telas. O famoso livro de Peter Biskind sobre o período – Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’roll Salvou Hollywood (Easy Riders, Raging Bulls) – é até citado em Homens Difíceis, mas Brett Martin, evidentemente, escreveu o seu ainda em meio à revolução e não pôde contar com o distanciamento histórico do outro. Não que isso o prejudique de alguma forma, mas o futuro, não muito próximo, pode trazer outras informações, além de novos olhares e interpretações, sobre algumas séries ainda em curso na época de seu lançamento, assim como as anteriores que desbravaram esse caminho.
Homens Difíceis não serve para incentivar pessoas a assistirem às séries, mas tem como público-alvo quem já as viu. Além dos óbvios spoilers, muitas passagens só se tornam interessantes para alguém já iniciado nestes universos, sobretudo Família Soprano e The Wire. Isso limita um pouco o alcance da obra, mas não diminui em nada o valor do trabalho, deixando o único problema real para nossa edição nacional, publicada pela Aleph. Existem erros crassos de tradução e revisão, tão graves que acabam adulterando determinada informação, dificultando para o leitor sem algum conhecimento prévio sobre que o autor fala. Erros inocentes de digitação e nomes grafados de forma incorreta, entre outros detalhes inconvenientes, indicam algo realizado às pressas, o que lamentavelmente tira uma classificação máxima do livro.
Apesar disso, se você acompanha de perto esse momento da televisão, para onde a ousadia que pertencia ao cinema migrou, não deve deixar de ler. É verdade que três anos depois do lançamento original e depois de testemunhar os finais de Breaking Bad e Mad Men, ler o livro agora traz a questão pertinente sobre qual é o caminho à frente dos homens difíceis – da vida real e da ficção – e por quanto tempo ainda eles serão uma regra entre a nata da dramaturgia televisiva.