Todos temos consciência de que o meio em que um indivíduo vive pode influenciá-lo totalmente. Mas até que ponto um ser pode transcender sua própria natureza, tornando-se efetivamente parte de outro mundo? O Homem Que Caiu na Terra (The Man Who Fell To Earth) não é um homem. Todavia, em convívio prolongado com os humanos, poderia ele se tornar um de nós?
Escrito por Walter Tevis e publicado originalmente em 1963, o livro ganhou reconhecimento mundial a partir da adaptação para o cinema dirigida por Nicolas Roeg e estrelada por David Bowie. Por mais que este texto seja sobre o livro e não o filme, adianto que a adaptação não só não faz juz ao material original, como também faz alterações que tiram o sentido da trama, além de possuir um vulgarismo que acaba com todo o clima mais filosófico da história. Pontuado isso, vamos ao livro.
A narrativa segue Thomas Jerome Newton, um alienígena vindo do planeta Anthea, cuja missão é salvar os poucos habitantes sobreviventes de sua terra natal, que está com os recursos naturais cada vez mais escassos. Para isso, ele precisa de fundos para financiar um grande e misterioso projeto. Com uma inteligência muito superior à dos humanos, o antheano logo se torna um empresário bem sucedido no ramo de patentes tecnológicas originadas de sua tecnologia extraterrestre. Intrigado com os rápidos avanços tecnológicos, o professor de química Nathan Bryce decide investigar a empresa de Newton mais a fundo. Com o passar do tempo e o convívio com humanos, o alienígena descobre o álcool e a melancolia, de tal modo a perceber-se hesitante em realizar sua missão.
A escrita de Tevis é simples e eficaz. As descrições dos cenários e dos personagens não vão muito além do necessário para o leitor situar-se. Isso ajuda no ritmo de leitura, tornando-a rápida e agradável. A sutileza também é um elemento que contribui muito para a sofisticação da obra. Fisicamente, Newton se passa tranquilamente por ser humano. Tirando alguns apetrechos como uma lente de contato, que – além de proteger seus olhos – o deixa com aparência humana, o que difere o alienígena de outros humanos é a baixa resistência a alterações de pressão, a baixa densidade óssea e uma organização interna de órgãos diferente da nossa. Mesmo que seja magro e pálido demais, seu caráter extraterrestre não salta aos olhos.
Sabemos muito bem que essa questão de um alienígena ser fisicamente semelhante a um humano é uma ótima desculpa para o cinema, pois evita gastos e mais gastos com maquiagem e efeitos especiais. Porém, estamos falando de literatura, onde o orçamento não oscila de acordo com os elementos colocados. Então, por que não viajar no aspecto físico do ser extraterreno e depois inventar algum dispositivo de disfarce na presença de humanos? Seria mais interessante e até mais coerente, certo? De fato, em algumas histórias isso possui potencial. Mas, em O Homem Que Caiu na Terra, essa semelhança não apenas é necessária como também é um dos principais pilares da história.
Ser diferente já é algo, por natureza, excludente, mas tudo depende do referencial. Uma pessoa pode ser muito diferente de outra, mas praticamente idênticas quando comparadas com outro animal. Newton sempre se enxergava como sendo diferente do povo da Terra, quando em Anthea e no começo de sua estadia na Terra. Com o passar do tempo e da convivência, mesmo que limitada, com seres humanos, a linha que separa o alienígena do humano fica cada vez mais tênue. A imagem que Newton vê no espelho permanece praticamente a mesma, mas a percepção de si mesmo vai mudando, mesmo que ele negue.
A fraqueza com o álcool e a melancolia o aproximam cada vez mais da condição de um ser humano. E mesmo que algumas pessoas à sua volta tenham uma enorme estima por ele, ainda assim é um ser que não pertence a nenhum mundo na verdade. Em Anthea, ele foi treinado e preparado para sua missão na Terra, sendo ensinado a ser um humano. Só que, em nosso planeta, ele tem que manter os laços afetivos com o planeta natal para ter uma motivação para concluir o resgate de seus semelhantes. Mas como manter laços afetivos com uma vida que foi destinada a ser uma outra vida?
É importante notar também que a história possui um contexto que está totalmente ligado à época em que o livro foi escrito, logo, a Guerra Fria é uma forte analogia dentro da história. No caso, a obra é da década de 1960 e a história se passa a partir dos anos 80. O personagem de Newton fala sobre como Anthea sofreu com o mau uso dos recursos naturais e tecnológicos, alertando que a Terra pode passar por algo semelhante. Dessa forma, o alienígena sugere que, quando seus semelhantes chegarem, eles vão impor uma espécie de Nova Ordem Mundial, algo que ecoa O Fim da Infância de Arthur C. Clarke, publicado cerca de dez anos antes.
O mais interessante na narrativa é que em nenhum momento o autor força algum viés de interpretação. Ele simplesmente descreve os acontecimentos e alguns pensamentos de personagens, sem conceber uma espécie de julgamento. Mas, essas ferramentas já são suficientes para que o leitor de perfil mais reflexivo consiga construir todo um panorama muito mais profundo e filosófico.
O fãs de ficção-científica, além da parte mais filosófica, também são brindados com a parte científica. O personagem de Bryce sempre questiona sobre os conhecimentos de Newton e chega a suspeitar de que ele é um alienígena apenas pela dedução lógica. E é claro que haverá o momento dele provar sua teoria junto com o leitor mais cabeçudo.
Infelizmente, o livro possui dois problemas principais. Um deles é que muitos personagens importantes que estão em volta de Newton não são desenvolvidos. Poderia até ser algo a relevar levando em conta que a história é focada no alienígena. Entretanto, há muitas interações que poderiam ser muito mais interessantes e melhor trabalhadas com um desenvolvimento mais adequado. O outro problema é que, mesmo sendo uma porta para diversas linhas de interpretação e reflexão, a obra ainda carece de um pouco mais de substância. O potencial é notável e isso é o que mais deixa o leitor frustrado.
O Homem Que Caiu na Terra não é um homem. Tampouco um alienígena. É um ser que coexiste entre essas duas condições. Nascido em um planeta e treinado para ser de outro, essa figura não possui uma motivação verdadeira. Não possui sequer uma vontade de potência. E não é assim que todos nos sentimos em determinados momentos? Todos temos nossa parcela niilista – por menor que seja – e, às vezes, a ficção-científica usa um não-humano justamente para falar sobre a humanidade, de maneira mais contundente e incisiva. Quão irônico, não?