A Segunda Guerra Mundial está entre os grandes eventos que marcaram o século XX. Capaz de mobilizar praticamente todo o mundo e mudar as fronteiras do mapa, não é de admirar as incontáveis obras de ficção e não-ficção que tratam desse assunto por diversos olhares. Em O Homem do Castelo Alto (The Man In The High Castle), Philip K. Dick nos mostra um mundo onde as coisas aconteceram de uma maneira diferente e aquilo que consideramos como realidade histórica pode ser apenas uma das possibilidades.
O romance se passa no ano de 1962 nos Estados Unidos, cerca de 15 anos após o final da II Guerra Mundial. Nesta narrativa, as coisas tomaram outro rumo, com as potências do Eixo derrotando os Aliados e o norte da América dominado pela Alemanha nazista e o Império Japonês. Dentro desse universo alternativo, negros são escravizados e os judeus permanecem escondidos ou com identidades falsas para conseguir sobreviver.
O ponto de divergência histórica entre o livro e o mundo real acontece em 1933, com o assassinato do presidente Franklin D. Roosevelt que, na realidade, morreu apenas em 1945. Após esse evento, o vice-presidente John Garner assume a presidência e posteriormente é substituído por John Bricker. Ambos não conseguiram superar a Grande Depressão e assumiram uma política isolacionista com a aproximação da Guerra, decisão essa que tornou os Estados Unidos incapazes de ajudar os outros Aliados contra o Eixo nazista.
A trama acompanha alguns personagens que têm ligações diretas ou indiretas entre si. Um norte-americano que ganha a vida vendendo antiguidades, um judeu que se esconde sob uma identidade falsa para evitar ser levado a um campo de extermínio, um burocrata japonês e uma mulher que, por meio da leitura de um livro clandestino intitulado O Gafanhoto Torna-se Pesado, tem um vislumbre de um mundo diferente em que Hitler está morto e os nazistas perderam a Segunda Guerra.
A vida destas pessoas é ditada pelos hexagramas do I Ching, o milenar oráculo chinês, que chegou à América com os japoneses que dominam a parte oeste do continente. A presença do I Ching é importante não apenas na trama, mas também em sua própria concepção, pois o próprio PKD se utilizou do oráculo para traçar o rumo da história. Isso trouxe um toque de aleatoriedade muito interessante para a obra, que faz com que os acontecimentos tenham uma naturalidade típica do nosso cotidiano. Isso também contribui muito com nossa identificação, pois diferente de um livro de história convencional, onde observamos um macrocosmo da situação, aqui acompanhamos os indivíduos que estão vivendo aquilo na pele.
Para aqueles familiarizados com a literatura de Philip K. Dick, a sinopse de O Homem do Castelo Alto pode soar um pouco distante do estilo usual do autor, que é a inserção de vários questionamentos sobre o que é a realidade. Com um olhar rápido, o enredo aparenta ser mais uma tentativa de construir uma história alternativa do mundo ao estilo “o que aconteceria se …” , que neste caso se completa com “… o Eixo vencesse a guerra”. Porém, mesmo que aparente ser um ponto fora da curva do conjunto da obra do autor, o romance ainda possui as famosas indagações e reflexões sobre o que é realidade e se é, de fato, apenas uma. Desta vez, no entanto, de uma forma um pouco mais implícita dentro do subtexto de toda a narrativa.
Em O Homem do Castelo Alto, o personagem responsável por escrever o livro O Gafanhoto Torna-se Pesado se chama Hawthorne Abendsen e podemos considerá-lo uma versão alternativa do próprio PKD nesse universo. Em meio a essa e outras questões, o leitor acaba com a sempre presente e favorita questão do autor com relação à natureza da realidade.
O parágrafo a seguir contém SPOILERS de O Homem do Castelo Alto!
A princípio, dá-se a entender que O Gafanhoto Torna-se Pesado representaria a nossa realidade, mas com a revelação de alguns trechos fica claro para o leitor que o livro trata de uma terceira opção de realidade, onde os Estados Unidos e a Inglaterra dividem o mundo após a Segunda Guerra. Outro ponto que evidencia a existência de múltiplas realidades é a epifania da personagem Juliana, que passa a ter consciência de que realmente há um mundo em que os nazistas foram derrotados. Contudo, aceitando essa ideia de Universos Paralelos, nos deparamos com um problema que é o próprio I Ching, que fala da chamada “verdade interior“. O que seria essa verdade? Será que PKD coloca uma provocação para afirmar que a realidade em si não existe e tudo que percebemos a nossa volta são apenas sombras ou representações de algo que não compreendemos? Teria Philip K. Dick criado Hawthorne Abendsen, ou Hawthorne Abendsen criado Philip K. Dick?
Vencedor do Hugo Award de 1963, O Homem do Castelo Alto é um dos romances mais bem estruturados de Philip K. Dick e figura entre os melhores de história alternativa. A trama vai além da criação de uma linha paralela à nossa e coloca os conceitos de realidade em xeque para que o leitor se questione continuamente durante e após a leitura. Philip K. Dick não apenas nos faz contemplar um espelho metafórico, mas também consegue nos colocar do outro lado. Mas afinal, qual é o lado correto?