A indústria de quadrinhos, como qualquer outro segmento, teve seus altos e baixos, sendo a primeira metade da década de 1950 um dos períodos mais difíceis para os profissionais e as editoras dos EUA, berço dos super-heróis. Não é segredo para nenhum fã – entre os mais estudiosos, pelo menos – o que a paranoia anti-comunista e a busca do Dr. Fredric Wertham por pêlo em ovo, com seu livro A Sedução do Inocente, causaram à toda uma geração de artistas e fãs, evento bem explicado em Homens do Amanhã, de Gerard Jones. O romance histórico As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay, de Michael Chabon, também aborda essa situação surreal, que o Brasil chegou a encarar de uma forma ou de outra, só que antes.
Para falar desse contexto de perseguição, é necessário retroceder ao ponto em que nosso país começa a publicar, com muito sucesso, personagens gringos de aventura, acontecimento narrado em A Guerra dos Gibis, do jornalista e pesquisador Gonçalo Junior, lançado em 2004 pela Companhia das Letras. O ponto de partida desta história é daquele tipo em que não haveria como prever as consequências e desdobramentos: a viagem diplomática à Exposição Internacional de Chicago, em 1933. O autor relata como Adolfo Aizen (1907 – 1991), então colaborador do jornal O Globo, acabou fazendo parte da comitiva enviada, contando com 150 personalidades influentes do Brasil, fruto da Política de Boa Vizinhança norte-americana, procurando estreitar os laços com a América Latina.
Lá, o jovem Adolfo descobriu um novo mundo na imprensa local. Encantado com os suplementos dos jornais, resolveu implementar a novidade por aqui, incluindo – é claro –os de quadrinhos. Mandrake, Tarzan, Dick Tracy, Príncipe Valente e Flash Gordon, entre outros, desembarcam no Brasil. O Suplemento Juvenil, lançado em 1934, no jornal A Nação, foi um sucesso, atraindo a atenção de outra figura de peso em nosso país. Roberto Marinho havia recusado anteriormente o projeto do antigo colaborador, mas percebeu o potencial da coisa e resolveu entrar na concorrência. Foi só o começo! Nos trinta anos seguintes, os dois, mais Assis Chateubriand e Victor Civita, foram os maiores editores de quadrinhos do Brasil. Aizen, inclusive, fundou a Editora Brasil-América (EBAL) em 1945, que tem um lugar de destaque no coração dos leitores brasileiros.
Mas o que isso tudo tem a ver com perseguição e censura? A verdade é que a tal guerra no título do livro tem duas fases, sendo a primeira essa situação quando, de repente, todos queriam publicar quadrinhos. A segunda, mais desagradável, é no momento em que começa o debate em torno das qualidades – ou a falta delas, segundo os detratores – intrínsecas dos quadrinhos. Ao contrário do que o leitor mais versado em História possa haver cogitado neste momento, não foi o Estado Novo de Getúlio Vargas a levantar essa bandeira, mas uma ideologia importada da Itália de Mussolini, que dizia que os gibis “desnacionalizavam” as crianças. Estava aberto o caminho para “intelectuais” moralistas cacarejarem sobre os malefícios dos quadrinhos à inteligência e ao comportamento geral da juventude, com Carlos Lacerda e Jânio Quadros entre os mais famosos prosélitos desta doutrina.
No meio deste debate, os inimigos de Roberto Marinho encontraram uma forma de atingi-lo através de sua proximidade com os quadrinhos. Orlando Dantas e Samuel Wainer, donos de jornais rivais, utilizaram a inquietação em torno do assunto para atacar Marinho, tachando o magnata de corruptor da garotada, em uma campanha de difamação oportunista. Esse tipo de cruzada pessoal não era incomum no expediente “jornalístico” da época, com guerras particulares descaradas que se aproveitavam da credulidade de um povo sem muita opção de informação. Uma situação que, ironicamente, evoca rixas famosas entre personagens de HQ’s. Quem se interessar em entender melhor como essa máquina funcionava, pode também procurar a biografia de Chateaubriand, Chatô: O Rei do Brasil, escrita por Fernando Morais.
A pesquisa de Gonçalo Junior cobre todos esses acontecimentos com muitos detalhes, chegando até a ditadura militar em 1964. A Guerra dos Gibis dá ao leitor a oportunidade de se inteirar sobre algo pouco comentado em nossa história editorial, jogando um pouco de luz neste caminho percorrido. Chega a ser desconcertante a inexistência de uma obra audiovisual que também se preste a revelar esses fatos para um público mais amplo, já que o assunto quadrinhos está hoje em evidência, desfrutando de espaço nos grandes veículos e do interesse de uma audiência bem mais significativa.
Enfim, fundamental para quem se interessa pela história dos comics e a trajetória dos quadrinhos no Brasil, acrescentando muito à biblioteca do leitor ávido por informações de bastidores. A Guerra dos Gibis é indispensável, junto com os dois livros citados no primeiro parágrafo e Marvel Comics: A História Secreta. Nós, que gostamos tanto destes heróis (os de papel e Adolfo Aizen), agradecemos.