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Futebol ao Sol e à Sombra – Pela alma latino-americana!

Futebol ao Sol e à Sombra fala sobre a intrínseca relação do esporte com a história do continente

Foi-se o tempo em que o Brasil era o país do futebol. Na verdade, muito do interesse da América Latina, continente que abraçou o esporte como quem abraça a própria razão de viver, se esvaiu. Por inúmeros motivos. E esses motivos estão diretamente ligados ao desenvolvimento da história social e política do continente. Essa é a investigação feita pelo uruguaio Eduardo Galeano em seu Futebol ao Sol e à Sombra.

No entanto, tal introdução austera não faz jus ao autor. Para fazer a devida reverência a ele, tentarei ser menos acadêmico e mais romântico, tal qual o esporte bretão um dia foi: Nos campos de futebol, foi e é travada a batalha pela alma do povo. E ao menos até agora, o placar nos é desfavorável.

Futebol foi escrito em 1995. O livro, como um todo, faz um traçado da história do futebol, desde suas possíveis conexões com o mundo antigo até a versão contemporânea apresentada pelos ingleses e trazido ao nosso continente ainda no século XIX. No entanto, Galeano abraça esse projeto, como dito, de forma menos professoral e mais afetuosa; Ele, um dos maiores apaixonados pelo esporte, se sentiria contrariado caso seu livro fosse tratado com um objeto de análise estéril. A narrativa de Galeano é intensa e comovente – emula bem até demais o ludopédio que celebra.

Galeano, um dos agentes políticos mais ativos da América Latina durante o período das ditaduras – foi exilado de seu Uruguai natal durante o período de repressão local – sempre enxergou o futebol como mais do que um esporte. E tem absoluta razão em fazê-lo. Conforme as evidências que ele mesmo apresenta no livro, esse esporte foi abraçado pelo povo não apenas pelo gosto, mas também porque, em sua simplicidade, era acessível.

O esporte do povo

Mas, do ponto de vista de seus organizadores, não deveria ser. Como muitas outras criações lúdicas dos britânicos, sua prática estava restrita a um exclusivo e discriminatório público de elite. Uma demonstração inata de “cavalheirismo competitivo”; um tremendo eufemismo para a distinção que separava esses “cavalheiros” da ralé.

Conforme trabalha Galeano no livro, ao abraçar a prática do futebol, trabalhadores desafiavam as chibatas dos seus mestres. Ao vencê-los em campo, pelo menos por um instante, demonstravam que toda a pompa e circunstância que os cercavam de nada valia, e em nada os elevava. O futebol tornou-se, assim o pai da verdadeira primeira isonomia. E a resistência das elites – impedir que trabalhadores jogassem entre si, que pessoas negras e mulheres pudessem jogar, etc. – tornava apenas cada uma das vitórias em busca da emancipação futebolística mais saborosa.

Eduardo Galeano

Mas Futebol não se trata apenas de um mero manifesto político usando o esporte como fundamento. Ao contrário, o autor celebra os heróis da bola pelo prisma de seus tempos mais românticos – aquela época que de fato pavimentou o futebol no imaginário latino-americano, inspirando inclusive gênios fora do campo, como Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues, citando apenas brasileiros, a comporem odes aos mitos de chuteira.

Friso que Futebol nem é um livro tão velho assim, pelo contrário: Foi publicado em 1995. O que torna o resgate e celebração de alguns personagens da bola ainda mais saboroso; nomes de verdadeiras lendas como Pelé e Di Stéfano compartilham espaço com figuras hoje praticamente esquecidas, como Pedro Rocha e Heleno de Freitas. Mas ao tecer um mito narrativo em torno dos feitos mitológicos em campo, Galeano – como bom cronista que é – eleva esses atletas a um outro patamar; a expressão becketiana “maior que a vida” cabe bem para definir suas descrições.

Cartão vermelho para as elites

E é aqui que reside a beleza de Futebol ao Sol e à Sombra: Galeano transforma fatos em ficção quando é preciso engrandecer e celebrar, e disseca os fatos em críticas quando é preciso atacar quem deve ser atacado. E isso inclui, evidentemente, a cartunesca organização que comanda o futebol, a FIFA, e seu aparente poço sem fundo de eternas denúncias de corrupção; o eterno populismo usado por governos ditatoriais opressores, que usava (e usa) o futebol como pedestal de poder e ferramenta de controle de massa; do proselitismo que até hoje permeia o ensejo do esporte, povoado por um grande número de pessoas rapidamente elevadas da pobreza, e sem nenhum senso crítico para lidar com suas condições de heróis.

Infelizmente, o autor uruguaio morreu em 2015. Galeano, que era tão crítico das práticas financeiras desbalanceadas que ameaçavam o esporte já em 95, quando já havia tido início a grande era dos patrocínios, deixou os campos desse mundo em um momento em que, mais do que nunca, o dinheiro comanda o futebol, tornando a própria relação entre os clubes em uma hierarquia de poder. O diagnóstico de seu óbito foi câncer, mas o que provavelmente o matou mesmo foi ver alguma criança uruguaia usando uma camisa do Real Madrid no lugar de uma do Nacional de Montevidéu, time por ele amado até o último de seus instantes.

Lendária seleção uruguaia de 1950, responsável pelo maracanazo.

Sim, foi-se o tempo em que o Brasil era o país do futebol. O amigo leitor talvez nem goste do esporte. Mas Futebol ao Sol e à Sombra é a prova cabal de que, se se quiser entender a história das veias abertas da América Latina – expressão pretendida – do ponto de vista de seu povo, é preciso compreender a vida que emana das canchas.

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