Home > Livros > Análises > Fantasmas Literários – Páginas de Medo!

Fantasmas Literários – Páginas de Medo!

Fantasmas habitam a literatura há muito tempo e nas mais diversas formas

Rejeitados pela doutrina cristã como criaturas do sobrenatural que habitam a nossa realidade ameaçando a existência dos vivos, os fantasmas retornaram ao lugar primordial dos seres fantásticos: a imaginação humana.

Fantasmas na literatura

O fantasma do pai aparece para o jovem Hamlet

Desde a Antiguidade, as narrativas dos encontros entre os vivos e os espíritos dos mortos que deram origem aos contos de fantasmas se alicerçaram em um conjunto de objetos, motivos e características que remontam ao caso da casa assombrada, registrada por Plínio, O Jovem, em suas cartas dos anos 97 a 109 da era cristã.

Considerado um dos primeiros registros do gênero, o relato do orador grego, descreve a assombração de uma casa pelo espectro de um ancião, o que leva a residência a permanecer fechada a despeito de sucessivas tentativas de alugá-la ou vende-la. Esta situação perdura até a chegada do filósofo Athenodorus, que consegue decifrar o mistério por trás da aparição.

O primeiro grande momento do fantasma literário ocorre na Inglaterra da virada dos séculos XVI para XVII através das peças Hamlet e Macbeth, ambas compostas por William Shakespeare no período. Baseada no Historia Danica of Saxo Grammaticus (1250), a conhecida tragédia do príncipe dinamarquês tem seu início na aparição do falecido rei ao seu amargurado filho Hamlet, quando revela que foi assassinado por seu próprio irmão.

Um dos pontos centrais da trama é a dúvida do príncipe sobre a aparição: o fantasma trajado com a armadura real que clama por vingança é realmente o espírito de seu pai, ou o demônio disfarçado se aproveitando da melancolia do jovem nobre?

Símbolo da reflexão do Realismo sobre o conceito do real e metáfora do reprimido em uma época de ascensão dos estudos sobre o inconsciente, o fantasma literário na Inglaterra vitoriana (1837-1901) e eduardiana (1901-1918) se mostrou um versátil personagem a serviço dos interesses de vários escritores.

Fantasmas na literatura

M.R. James (1862-1936)

Inglaterra sobrenatural

Neste processo, a proliferação das narrativas literárias centradas em fantasmas ao longo das décadas de 1840 a 1920 fomentou a constituição de um subgênero próprio dentro da literatura gótica que ficaria conhecida como “Conto de Fantasma”. Mas por que esta expressão literária, desde as suas raízes folclóricas medievais, encontrou especificamente na Inglaterra o terreno propício para crescer e frutificar?

A resposta inicial para esta questão vem com outra pergunta: Ainda que hoje vários países europeus conservem o regime monárquico, quando você pensa em rei, rainha, cavaleiro, castelo e outros ícones da Idade Média, qual lugar vem a sua mente? A associação monarquia = Idade Média = fantasma = Inglaterra decorre de uma série de fatores que englobam desde a importância deste período histórico para o desenvolvimento das fundações do país, no qual o sobrenatural exerceu papel importante, até a própria natureza geográfica dela como uma ilha.

Sobre este último ponto, enquanto símbolo de um passado que assombra o presente, o fantasma incorpora a condição inglesa de país insular que, como é característico deste caso, é avesso a mudanças que possam ameaçar sua existência; um fato representado, por exemplo, na resistência da Inglaterra em abandonar sua moeda corrente a favor do Euro europeu e a recente saída do bloco europeu.

A teoria evolucionista de Charles Darwin, as pesquisas sobre o inconsciente de Sigmund Freud, as  análises de Marx sobre os rumos da Revolução Industrial e as considerações de Albert Einstein sobre a relativização do tempo culminaram na erosão das certezas herdadas do Iluminismo quanto a origem e lugar do homem no universo. Desnecessário dizer que dentro deste zeitgeist em que tudo se desmancha no ar, um ser evanescente como o fantasma encontrou o espaço perfeito para atuar.

A trajetória do conto de fantasma até a segunda década do século vinte não poderia começar senão pelas histórias do mais representativo escritor do período: Montague Rhodes James. Através deste medievalista inglês, editor de livros como Ghost Stories of an Antiquary (1904), More Ghost Stories of an Antiquary (1911), A Thin Ghost and Others (1919) e da enciclopédica Collected Ghost Stories of M. R. James (1931), o fantasma retomou sua forma popular como uma inequívoca manifestação, na maioria das vezes maligna, do Além, imagem que permanece até hoje graças a M. R. James, como era popularmente conhecido.Em uma época marcada pela dissolução das crenças e valores, o fantasma de James se coloca paradoxalmente como um sólido símbolo de outro tempo marcado por claras divisões entre o bem e o mal.

Antecipando o uso de objetos e lugares do cotidiano, que se tornou marca registrada do mestre norte-americano do horror moderno Stephen King, M. R. James situou suas narrativas em lugares comuns – estações de trem, jardins, bibliotecas e casas de campo – construindo suas tramas com detalhes minuciosos e a presença da tradição oral medieval, fonte alias de onde ele retirou a maior parte de suas histórias sobrenaturais. Contos como “Corações Partidos” (“Lost Hearts”) e “Toque o apito e virei ao seu encontro, rapaz” (“Oh, Whistle, and I’ll Come to You, My Lad”), publicados originalmente em Ghost Stories of an Antiquary, chamaram a atenção da crítica literária e do público leitor para a excelência de James.

Os numerosos contos de fantasmas escritos ou editados por M. R. James em suas coletâneas evidenciou a enorme produção literária do gênero nos anos de virada do século XIX para o XX. Quase todos os escritores do período vitoriano e eduardiano, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos se aventuraram pelos domínios deste ser sobrenatural, contribuindo em maior ou menor grau para o estabelecimento, renovação, releitura ou desgaste de suas convenções e estratégias narrativas até ser levado a outros domínios para assombrar: o cinema. Mas isso já é outra história.

 

Já leu essas?
Shakespeare na Cultura Pop - FormigaCast
Shakespeare na Cultura Pop é a pauta deste FormigaCast!
O Homem de Giz - C. J. Tudor
O Homem De Giz – Homenagens e busca por originalidade!
Território Lovecraft – O racismo revisitado no pulp!
Anônimo – Uma ode ao Terror literário!