A Fantasia inesquecível de China Miéville em Estação Perdido
No campo da literatura de fantasia/ficção científica, a aclamação do nome China Miéville pela crítica especializada pode dar a impressão de que o inglês faz parte daquele famigerado ciclo do hype, mas uma rápida pesquisa sobre o currículo deste escritor peculiar, ainda jovem, demonstra que não é o caso. A quantidade de prêmios entre os mais importantes do gênero, mais os elogios rasgados de outros autores consagrados, merece atenção. Certamente, isso o destaca de alguns, cuja credencial, alardeada com orgulho pela galera do Oba-Oba, é escrever livros como contratado de alguma franquia bilionária, ou ter os direitos de uma de suas obras comprados por um grande estúdio ou canal.
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Objetivamente, o que esse cara tem de especial? Só para começar, ele tem um repertório literário vasto, não apenas em torno de ficção científica e fantasia. Muitas vezes, conhecemos um autor mais novo do gênero e não demora muito para percebermos em qual dos grandes nomes clássicos ele se inspirou, mas Miéville é um caso bem diverso. Encontramos influências de outros escritores em seu texto, claro, mas ele cria sua colcha de retalhos a partir de elementos inusitados, como o Realismo Mágico latino-americano e o Naturalismo, dando origem a um novo tipo de literatura fantástica. Se em A Cidade & A Cidade encontramos ecos fortes de As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, no meio de um caldeirão eclético, em Estação Perdido (Perdido Street Station) – lançado originalmente em 2000, chegando agora ao Brasil pela Boitempo – a gama de influências e a imaginação do escritor mostram um alcance bem maior.
Imagine algumas criaturas sencientes que parecem saídas de O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges. No meio delas, espécies tão assustadoras como uma descrição de Borges reimaginada por Clive Barker. Misturados em uma sociedade com humanos comuns, essa diversidade existe em um cenário imundo e decadente, lembrando uma tradicional Inglaterra Vitoriana Steampunk, com a magia (taumaturgia) coexistindo com a tecnologia rudimentar em alguns pontos e extrapolada em outros, tudo descrito com a propriedade meticulosa de um Jack London. Adicione também uma pitada da escrita de William Burroughs. Você pode ter feito um esforço considerável para pensar em algo com essa descrição, mas, ainda assim, nem ter se aproximado do grande exercício de imaginação que é essa tour de force do escritor prodígio.
Primeiro livro do autor ambientado no mundo de Bas-Lag, a história de Estação Perdido se passa na metrópole de Nova Crobuzon, governada por um parlamento corrupto e autoritário, que tem como ponto de intersecção a estação que dá nome à obra. Essa sociedade retrógrada não vê com bons olhos o relacionamento interespécies, o que dificulta a vida do cientista humano Isaac Dan der Grimnebulin, romanticamente envolvido em segredo com a escultora Lin, uma khepri, cuja particularidade de suas fêmeas é ter um besouro no lugar da cabeça. Enquanto ele é contratado para ajudar Yagharek, um desesperado e melancólico garuda, espécie de homem-pássaro, ela recebe uma proposta irrecusável para criar uma peça única. Ambos veem suas respectivas oportunidades como grandes chances, mas a pesquisa de Isaac terá um desdobramento inesperado e trágico que afetará a cidade inteira e além.
Isso é muito pouco para descrever a torrente de personagens e seres bizarros que desfilam por seiscentas e poucas páginas, enquanto o autor vai descrevendo Nova Crobuzon com um detalhamento raro. O cuidado com o qual ele nos apresenta um pouco deste mundo alternativo, mais o mapa da cidade no início do livro, traz mais verossimilhança e faz o leitor passear mentalmente por esse local pouco agradável, porém fascinante. Esta não é uma história que nos poupa quando é preciso se esconder em um esgoto ou em um prédio abandonado. Toda nojeira que esperaríamos encontrar em uma situação como essa é relatada sem medo, tal como os tormentos que nossos protagonistas, totalmente desprovidos de qualquer heroísmo glamouroso, precisarão passar.
Falando no grupo principal, Isaac, Lin, Yagharek e Derkhan, uma amiga do casal, é incrível como a descrição dos locais, das pessoas e dos procedimentos não impediu Miéville de trabalhar incrivelmente a profundidade deles. Os sentimentos são tão absolutamente críveis e intensos, sobretudo no caso de Yagharek, que qualquer leitor vai sofrer e torcer por eles, comemorando cada pequena vitória nesta jornada, às vezes, sorrindo sem perceber durante a leitura. Além destes momentos mais dramáticos, a aparição das tais criaturas medonhas carrega no incômodo e nos faz sentir o asco, o medo e a tensão, completamente justificados, que os personagens sentem nestes trechos. Mérito também da tradução caprichada.
Apesar da relação forte entre o autor e o ativismo marxista, o mesmo faz questão de rejeitar a associação de seu trabalho com alguma metáfora mais direta da vida real, conforme entrevistas. A verdade é que Estação Perdido, com seus políticos corruptos auxiliados por uma milícia violenta, criticada por um jornal clandestino em um local onde várias pessoas vivem em condições precárias, parece trilhar um caminho assumido de crítica, onde seguimos o texto esperando que isso tome uma forma mais clara, auto explicando-se. Felizmente, é apenas uma impressão inicial que é esquecida enquanto a leitura avança. A complexidade desta trama é bem maior do que aparenta no começo e desafia associações desta natureza.
A única ressalva que se pode fazer sobre o conjunto é um detalhe que pode até passar despercebido por muitos, o que a torna essa impressão mais pessoal. A rede de relacionamentos entre os personagens tem algumas coincidências convenientes demais para o andamento da história, dentro de um imenso cenário geral. Exemplificando bem por cima para evitar revelações, a operação por trás do caso – acidental – que muda a vida de Isaac tem envolvimento de pessoas que ele já conhecia. Em alguns momentos, o fluxo de causa e efeito também faz um pouco de força para manter a ligação entre os protagonistas. Isso se torna compreensível pelo tamanho da obra e o quanto de acréscimo seria preciso para contornar isso de maneira a parecer mais casual. Não é um problema grave, mas uma pequena gordura narrativa dentro de uma grande realização.
Além da quebra das amarras do convencional que caracteriza o New Weird, denominação do segmento da ficção científica que identifica a escrita de Miéville, conferir a riqueza e a verossimilhança do mundo de Bas-Lag é um tipo de experiência rara hoje em dia. Se isso não basta, a construção psicológica dos personagens de Estação Perdido torna tudo ainda mais especial, seja para iniciados ou não. Aliás, só para atiçar um pouco mais a curiosidade, os fãs de William Gibson podem se sentir mais recompensados durante a narrativa.
Enfim, como todo bom leitor é um pouco masoquista, por mais que esse mundo ficcional não seja um lugar muito convidativo, é difícil conter a vontade de visitar Bas-Lag novamente. Que venham os próximos – A Cicatriz e Conselho de Ferro, já confirmados pela Boitempo – e que um talento como China Miéville se torne cada vez mais conhecido. No meio do caminho, se incentivar alguns novos escritores a procurar fontes de inspiração mais alternativas e evitar o pastiche, é mais um motivo para agradecê-lo.