Spaghetti Western é aqui!
Tem gente que faz pensando em agradar a comunidade acadêmica, outros preferem encontrar algo bem complicado ou obscuro para garantir a fama underground. Motivos não costumam faltar na hora de escolher o tema de um trabalho importante, como uma dissertação ou uma tese. Mas e se a paixão for levada em conta, acima de qualquer questão burocrática e racional? Bom, os resultados costumam ser bem motivadores. Basta ver o exemplo do jornalista e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Rodrigo Carreiro. O tema da sua tese de doutorado foi um dos diretores mais amados dos cinéfilos que possuem um pé no Velho Oeste, além de menos lembrado nos bancos acadêmicos quando o assunto é cinema: Sergio Leone, o papa do Spaghetti Western.
Era Uma Vez no Spaghetti Western – O Estilo de Sergio Leone é tão inovador e de linguagem inteligente e acessível que passou de trabalho para obtenção de um título para um livro da coleção Cinema Estronho, voltada para a Sétima Arte, sempre fugindo do clichê. A proposta de Carreiro é um deleite para os fãs deste que foi um dos mais criativos e rentáveis ciclos de cinema da Itália, desde a década de 50 buscando inspiração nos sucessos de Hollywood para produzir centenas de filmes nos mesmos moldes. Porém, com menos da metade do orçamento.
Os épicos estavam levando multidões às salas de exibição? Os italianos criaram o pepla, palavra que faz referência aos saiotes comuns nos figurinos dessas produções. Douglas Sirk fazia o público chorar nos Estados Unidos? Lá vai o italiano realizar um film fumetto, sua versão dos melodramas românticos. É explicando essa estratégia de produção que o livro introduz o leitor no universo do spaghetti western e, na sequência, no poder de sedução visual de Sergio Leone.
Leone genial
Não há dúvida que, em meio aos mais de 500 (!!!!) filmes de spaghetti western realizados entre as décadas de 60 e 70 (há divergências sobre o número exato e o livro se debruça sobre isso), muita coisa não tem qualidade. Além da pouca verba para produção e elenco, era comum diretores dobrarem a jornada para realizar dois filmes ao mesmo tempo. Não que isso fosse motivo de correria, já que o cenário principal, o deserto de Almería, localizado no nordeste de Madri, na Espanha, era cenário de um em cada dois filmes. Era quase como atravessar a rua e já entrar em outro set. Vale a explicação: em 1959, Almería havia sido cenário de um faroeste britânico, o ótimo O Xerife do Queixo Quebrado, dirigido por Raoul Walsh. A produção construiu uma cidade cenográfica, chamado Hojo de Manzanares, e não se deu ao trabalho de desmanchá-la após o fim das filmagens. Logo, é ela a cidade de um em cada dois spaghetti westerns!
Historinhas à parte, Era Uma Vez no Spaghetti Western ganha fôlego quando Carreiro começa a discorrer sobre os detalhes que tornam Sergio Leone superior aos seus colegas que dirigiam filmes dentro do ciclo spaghetti. Os amantes do gênero vão bradar em fúria, mas mesmo que haja talento em Sergio Corbucci*, Sergio Sollima (eita, ciclo virado em Sergios!) e Enzo G. Castellari, por exemplo, Leone tinha uma assinatura inigualável e que pode ser sentida até seus últimos trabalhos, como seu flerte com a comédia Meu Nome é Ninguém, de 1973 e o retrato dos imigrantes em Era Uma vez na América.
*(Aliás, faz um tempo que disseram haver interesse em reviver o Django de Corbucci…)
O livro percorre toda a fortuna crítica, os elementos constantes nos filmes e também a parceria de Leone com Hollywood para a realização daquele que é, sem dúvida, seu filme mais conhecido, comentado e amado. Era Uma Vez no Oeste muitas vezes é incluído como uma produção que se encaixa nas características do spaghetti western. Mas há muito mais nele que um duelo numa rua empoeirada e uma ferrovia que promete matar uma vida feita à cavalo. Na verdade, é uma grande homenagem de Leone a todos os filmes que vieram antes dele, com direito à presença de personagens icônicos e uma trilha sonora específica para cada um deles.
Tire os acordes criados por Ennio Morricone e nem Claudia Cardinale ou Charles Bronson serão os mesmos. É música como personagem. Mas isso já existia lá em 1964, em Por Um Punhado de Dólares**, do próprio Leone, o caro leitor pode pensar. Só que aqui, a coisa está elevada à décima potência. Um épico que, nas palavras do próprio diretor, pretendia criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. E isso está na tela. Morrem os homens, morre um jeito de viver, morre a inocência. Nasce a ferrovia.
**(Falando nisso, já viu nosso vídeo sobre a Trilogia dos Dólares?)
Spaghetti aos montes
É imaginável que nem tudo foi tiro certeiro na caminhada do autor, já que é sabido que muitos críticos e até cinéfilos discutem o valor do spaghetti western para a Sétima Arte. Claro que produzir a toque de caixa e em larga escala prejudica a qualidade. Só que a turma que deu os primeiros passos na paixão pelo cinema com um exemplar do faroeste italiano é grande. Esta que vos escreve faz parte dela. Nem todo mundo é obrigado a entrar na cinefilia com um Bergman ou um Truffaut. Cada um tem seu ritmo, seu tempo de descoberta. E começar pelo que não é comum ou mesmo unanimidade entre os dito entendidos nos dá um olhar único, sempre aberto para experimentar. Era uma vez no Spaghetti Western foi escrito por alguém assim e dá uma verdadeira aula para quem ainda fica na dúvida se entra ou não no mundo dos spaghettis. E tem paixão em cada linha empoeirada pela areia de Almería.