A jornada de Elric continua
Foi uma longa espera desde o primeiro volume do anti-herói mais famoso de Michael Moorcock*, que a Generale publicou ainda em 2014. Continuando a saga do imperador albino, a editora lançou há pouco Elric de Melniboné: Livro Dois, reunindo na mesma edição dois segmentos que são publicados separados nos EUA e Europa. O Navegante nos Mares do Destino (The Sailor On The Seas of Fate) e O Destino do Lobo Branco (The Weird Of The White Wolf) compõem cerca de trezentas e trinta páginas, acompanhando Elric em ambientes cuja psicodelia exige bastante da imaginação do leitor.
*(Falando nele, já leu a resenha de Eis o Homem?)
Compre clicando na imagem abaixo!
Na resenha do Livro Um, foi comentada a diferença entre a ordem de publicação original e a cronologia do personagem. Lembrando que a editora aqui segue a linha do tempo da história, opção mais do que acertada para não enlouquecer os leitores. O Navegante… foi publicado originalmente em 1976, mostrando Elric já há algum tempo viajando pelos Reinos Jovens e padecendo de sua dependência da espada sugadora de almas Stormbringer, de onde tira boa parte de seu vigor. Subitamente, um navio misterioso cruza seu caminho de forma oportuna.
Sem recursos e em perigo, a única opção é embarcar, mas essa estranha embarcação conta com um capitão cego que é um tanto vago sobre seus motivos, propondo que Elric faça parte da expedição cuja missão é matar um casal de irmãos feiticeiros em uma ilha. Claro que nada é tão simples nesta aventura, pois o navio tem acesso a outros planos do Multiverso e mistura passado, presente e futuro. Isso coloca Elric em contato com três versões alternativas de si mesmo nesta tripulação. Os quatro juntam-se para acabar com a ameaça de Agak e Gagak.
Se a mitologia Moorcockiana é novidade para você, apenas um comentário para ilustrar a abrangência do trabalho do autor. Os companheiros do albino na empreitada, Erekosë, Corum e Hawkmoon, possuem suas aventuras solo, cada um atuando como Campeão Eterno em seu respectivo mundo. A existência deste universo – ou melhor, multiverso – compartilhado não é uma informação vital para o entendimento da história. Apenas mais uma observação sobre como nosso mercado editorial é carente.
Agilidade da narrativa pulp + imaginação britânica
Se você conheceu Elric de Melniboné e o trabalho de Moorcock no livro anterior desta série, deve ter observado um detalhe característico. A capacidade do autor de construir personagens e situações fantásticas sem deter-se em descrições detalhadíssimas confere muito dinamismo ao conjunto, na contramão de vários outros escritores do gênero. Pois O Navegante… vai além neste quesito. É impressionante como determinados eventos e conceitos complexos são descritos, com uma economia notável de palavras que não sacrifica nada da experiência do leitor. Pelo contrário.
O clima onírico que permeia toda essa obra é bem mais forte neste primeiro segmento, seguido diretamente por uma situação em que Elric, ainda nos mares dimensionais, se dispõe a ajudar uma mulher que foge de um nobre de Melniboné que deveria estar morto há séculos. Ainda sobre o reino que pertence ao nosso protagonista, a última narrativa de O Navegante… revela para nós – e Elric – algo do passado longínquo de seu povo, sua aliança com o Caos e como tornaram-se tão arrogantes.
O Navegante nos Mares do Destino foi adaptado aos quadrinhos por Roy Thomas e Michael T. Gilbert, que entregaram algo bastante fiel a esse texto. Essa minissérie foi originalmente lançada pela First Comics em 1985, chegando ao Brasil em 1991 pela Editora Abril.
A verdadeira estreia de Elric em O Destino do Lobo Branco
Deixando cerca cento e trinta páginas ao terminar a aventura anterior, chegamos aos primeiros contos que apresentaram Elric ao mundo em 1961, na publicação Science Fantasy. A Cidade dos Sonhos, que a Arte & Letra já havia publicado em sua coletânea Crônicas de Espada e Magia, se inicia com o protagonista envolvido com um plano de invasão a Melniboné, auxiliando uma frota de humanos dos Reinos Jovens. Encaixando-se como consequências dos acontecimentos do final do Livro Um, ele paga pelo excesso de confiança por ter perdoado seu primo traidor Yyrkoon, deixando-o como regente em sua ausência.
Além do desejo de vingança, é necessário resgatar sua amada Cymoril, mantida em um sono induzido pela feitiçaria de seu próprio irmão usurpador do trono. Para isso, o monarca exilado tem apenas uma condição para conduzir a frota dos Senhores do Mar: que Yyrkoon e Cymoril sejam entregues a ele com vida, sem importar-se com saques, destruição ou quaisquer maus tratos ao povo da Ilha do Dragão.
Aqui, encontramos Elric mais amargo e amoral do que anteriormente. Vítima das circunstâncias e obrigado a escolhas dolorosas, o caráter de anti-herói deste fascinante personagem cresce muito aqui. Agora é necessária uma contextualização sobre alguns defeitos relativos em O Destino do Lobo Branco. Se o texto econômico de Michael Moorcock não havia prejudicado a narrativa até então, aqui é provável que falte um pouco de desenvolvimento em algumas situações de potencial dramático.
No entanto, como atenuante, cabe aí a consideração já feita. Os três segmentos desta segunda metade do livro, abrindo com A Cidade dos Sonhos, depois de um prólogo protagonizado por um personagem apenas citado no Livro Um, são os primeiros contos do personagem. Acompanhar a ordem dos acontecimentos nos mostra a jornada de Elric, mas olhar para a ordem de publicação nos mostra a evolução do escritor. Talvez até uma visão de mundo que vai se moldando, refletida no comportamento do próprio Elric.
É interessante pensar em como seria ler tudo isso pela ordem em que foram escritos. Com essa contextualização, é possível deixar de lado esses detalhes e se concentrar nas sequências de batalha marítima, com a participação dos dragões do reino, que estão entre as melhores coisas em O Destino do Lobo Branco. O lado feiticeiro do príncipe e o embate entre Caos e Ordem é bastante explorado nestes três segmentos finais, mas os fãs da carnificina que alimenta Stormbringer também não terão do que reclamar.
A Cidade dos Sonhos (The Dreaming City) também ganhou sua versão em quadrinhos em uma única graphic novel da Marvel, em 1982. Mais um roteiro de Roy Thomas, com arte de P. Craig Russell, publicado por aqui pela editora Globo em 1990.
Edição brasileira com vários problemas
Material mais do que especial para os fãs de fantasia e aventura. É a importância e a qualidade dele que tornam ainda mais dolorosos os deslizes da edição nacional. Sobre as particularidades da ordem original de publicação, o assunto abordado nesta resenha não valeria um prefácio explicativo? Aliás, algo que já poderia ter vindo no livro anterior, organizando as informações e a cronologia e preparando o leitor para as mudanças de clima entre os contos.
Fica difícil para o leitor que conheceu agora o personagem imaginar o alcance a abrangência deste trabalho. Esse é um ponto sensível para qualquer pessoa que goste de ir a fundo em obras que lhe chamem atenção, mas Elric de Melniboné: Livro Dois ainda tem coisas mais graves a se observar. Por exemplo, nada justifica a divindade do Caos que protege Elric – Arioch – ter seu nome ridiculamente grafado como “Arioque”, isso depois de apresentado corretamente.
Além disso, a tradução peca visivelmente na construção de algumas frases, assim como a revisão, que ignora detalhes bem perceptíveis. Talvez os fãs mais antigos de Elric preferissem as ilustrações de Michael Whelan, artista há muito associado ao personagem, nas capas desta coleção, mas isso é relativo. De qualquer forma, mesmo sendo um problema à parte da qualidade da escrita, a nota máxima foi comprometida por conta destas falhas editoriais, difíceis de ignorar quando se trata de recomendar a alguém.
Só nos resta esperar um cuidado maior nas próximas edições, que torcemos para que não demorem tanto, inclusive. Independente das eventualidades, Elric de Melniboné: Livro Dois merece o lugar em sua estante e vale a viagem tragicamente complexa ao lado deste atormentado aventureiro.
Hawkwind para terminar… e animar!