O divertido desabafo prosaico em E Cuidado Com o Sal
Lá pelas tantas, o autor grita em mais um arroubo de sinceridade: “As pessoas compram as merdas dos meus livros e falam merdas sobre as merdas dos meus livros, e eu escrevo mais livros de merda, como a merda deste livro que estou escrevendo neste momento e você está lendo, para que as pessoas falem mais merdas sobre eles. Toda vez que você me vir, pode ser sincero sobre as merdas dos meus livros. Olhe-me nos olhos e diga: ‘seus livros são uma merda’”. Após tanto conteúdo fecal verborrágico, o leitor deste trecho poderá ficar entre duas certezas: ou se está diante de um escritor com graves problemas de autoestima ou lendo a proclamação de um criador tão envaidecido sobre a criatura que a deprecia, esperando os mais eloquentes argumentos em contrário. Mas não. O leitor mais atento, que ousou se aventurar pelas páginas, como frisa o ameaçador alerta na orelha, saberá que o singelo autor está sendo, simplesmente, sincero. Essa é a pegada de E Cuidado Com o Sal.
Terceiro livro de Fernando Risch, recém-lançado pela Editora Estronho,não se trata de uma obra de ficção, autoajuda (de forma alguma), crônicas, ou mesmo, autobiografia, embora este último seja o gênero que mais o descreva. Não há uma história bem definida, pois se trata apenas da história da vida de um homem comum, e como toda história de vida de um homem comum, não pode ser bem definida. Mais ou menos como um diário, se propõe a contar as reflexões do autor sobre os mais prosaicos momentos do seu cotidiano, o que inclui a relação com a família, trabalho, religião, política, com a dieta, o nutricionista, a academia e as muitas idas ao banheiro, entre outros.
Cuidado com o que você sabe que te faz mal
O texto de E Cuidado com o Sal é fluido, fácil e divertido, apesar de todas as vãs tentativas de parecer incômodo com uma avalanche de palavrões. Não fala sobre nada e ao mesmo tempo fala sobre tudo que o leitor conhece. Ao se esforçar em ser sincero sobre a banalidade de sua vida, Fernando Risch cria uma conexão única com o leitor e puxa-o pra seu mundo pela disposição com que enfrenta o pessimismo sobre o nada. Com vocabulário leve, cheio de ironia inteligente e politicamente incorreto, a leitura das 140 páginas pode durar apenas algumas poucas horas. O defeito está por um desejo de aprofundamento que, infelizmente, não acontece.
Como narrador da história, Risch mostra que sua vida não é o que se pode chamar de vazia. Escritor em ascensão, possui relação afetuosa, embora ainda em construção, com seus círculos de leitores. Radialista, tem boa relação com colegas de trabalho e com o próprio o emprego. Com a família, vive relação nem tão próxima, nem tão distante, como tantos casos mundo afora. Tem uma namorada sempre disposta a tolerar seu humor inconstante. Tem amigos, curte futebol, festas, cerveja. Odeia Anitta (ou adora). Pode-se então esperar que o escritor não teria nada a dizer…
E realmente não tem, mas é ai que se esconde a grande qualidade do livro de Risch. E Cuidado com o Sal traz daquelas filosofias involuntárias, típicas de obras frutos de seu tempo, sobre um mundo em que a sociedade convive com um mal-estar latente, incoerente, intrusivo, que tenta se disfarçar sob as muitas máscaras impostas pela convivência, mas que acaba resultando apenas em angústia.
Nada é pior que a angústia
“Nada é pior que a angústia” repete o narrador a toda oportunidade. “Tudo caminha para o Nada” sentencia à exaustão ao refletir sobre os acalentos que a religião poderia oferecer ao Homem, mas que apenas reforçam a desesperança de um mundo sem sentido. Mas por que precisaria ter sentido? A vida não é novela nem filme adolescente pra ter sentido e, se não há esperança, melhor assim, foda-se, que isso sirva de propulsão pra se viver a vida da melhor forma possível, mesmo que com algumas dores de barriga e disenterias eventuais. Ao falar sobre a banalidade do Nada, o autor nos induz a questionar sobre a banalidade de nós mesmos e como ela pode ser rica quando refletida com ardor.
Um mundo em que nos sentimos desconfortáveis, mesmo tendo tudo o que desejamos ou precisamos, tentando camuflar o mal-estar existencial que nos afoga através das mais mundanas idiotices. Mesmo assim, apesar de tudo, tentando ser felizes, pois tudo se trata, afinal, de uma grande caminhada rumo ao Nada, que une bons e maus, heróis e vilões, vítimas e algozes. E isso, não se trata de negativismo ou desesperança, mas apenas a constatação que a vida de todo mundo, em algum momento, é tocada pela angústia da banalidade, mas que o objetivo de todos é apenas a simples felicidade. O narrador, apesar de todas as queixas, xingamentos e indagações, não deixa dúvidas sobre isso. Pena que, infelizmente (não, pena não, nada infelizmente, muito felizmente) as melhores qualidades deste livro sejam involuntárias.
A angústia e o mal-estar do mundo contemporâneo já influenciou artistas e pensadores de todas as épocas, de Goethe e Freud a Bukowski e (por que não?) Matt Groening. A partir delas, pode-se gerar obras de profunda perturbação espiritual ou de descontração terapêutica, mas que sempre mostram que algo muito errado está acontecendo. Risch passa longe de seus pares de maior genialidade, mas entrega um texto inteligente na sua simplicidade, e que propõe uma interessante reflexão sobre o que estamos fazendo com a vida que levamos.
Que guri ligeiro esse…
Fernando Risch Garcia nasceu em Bagé, Rio Grande do Sul, em 1989. Seu texto, aliás, ressalta bem o regionalismo e a cultura gaúcha. É formado em jornalismo e em Marketing. Começou a escrever ainda na faculdade de jornalismo. Publicou o primeiro livro em 2015, O Homem e Seus Demônios, sobre um escritor que, após encontrar o sucesso que tanto buscava, entre em crise existencial e passa conversar com seus autores favoritos. No ano seguinte foi publicado Hotel California, inspirado na famosa música homônima da banda norte-americana The Eagles. Ambos foram escritos quase simultaneamente.
Todos os seus livros trazem muito de si mesmo e sua relação com contemporâneo, embora E Cuidado com o Sal seja o mais explícito neste ponto. Este, ironicamente, é um livro acolhedor, de fácil identificação com o leitor, mesmo que de vida completamente diferente. Ao contrário dos impropérios que diz nos avisos iniciais, você não se sentirá ofendido. Pelo contrário, talvez se sinta muito bem compreendido.