Escritos que fizeram um longo caminho até sua publicação em Doze Contos Peregrinos
O Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, carinhosamente apelidado como Gabo, falecido em 2014, tem como seu livro mais famoso o obrigatório Cem Anos de Solidão (1967), que alcança – e costuma agradar – até mesmo leitores sem muita proximidade com a literatura latino-americana. Imortalizado como um dos grandes nomes do Realismo Mágico*, o colombiano deixou uma obra que sempre merecerá espaço e discussões, portanto, é sempre conveniente comentar os trabalhos menos conhecidos. Este Doze Contos Peregrinos (Doce Cuentos Peregrinos) é um destes casos.
*(China Miéville tem essa vertente como influência. Leia as resenhas de A Cidade & A Cidade e Estação Perdido)
Antes de mais nada, é bom salientar que esta coletânea é uma ótima porta de entrada para os que ainda não tiveram contato com o celebrado autor, mas tem curiosidade pela sua fama. Atualmente em catálogo no Brasil pela editora Record, o livro, de pouco mais que 250 páginas, foi originalmente lançado em 1992. O título é justificado pelo próprio Gabo em um prefácio que resume dezoito anos de idas e vindas destas ideias. Muitas delas começando a ganhar corpo em um momento, mas depois indo para o lixo e, inesperadamente, retornando de alguma forma.
Com esse tortuoso e demorado processo criativo, surgiu uma dúzia de pequenas histórias que giram em torno de personagens latinos em situações diversas na Europa. Essa galeria de tipos bem diferentes entre si é a grande força do conjunto, cujas descrições e contextos peculiares já capturam nossa atenção de imediato e estimulam a curiosidade. Com narrativas que variam entre cerca de quarenta e quinze páginas, é uma leitura absolutamente dinâmica, mas seu caráter descompromissado não atrapalha a excelência da escrita ou a substância de seus “atores”.
Nas páginas de Doze Contos Peregrinos, encontramos um homem que carrega o cadáver de sua filha até Roma para pedir a canonização da menina ao próprio Papa, uma mulher cujo ofício era relatar seus sonhos (com uma participação de ninguém menos que Pablo Neruda), a esposa e assistente de um mágico que – por engano – é internada em um hospício e uma prostituta idosa que prepara seu próprio funeral, entre os outros que compõem a edição, tão inusitados quanto.
Ao passarmos pelo índice, os títulos de cada conto já soam como convites para entrarmos nestes pequenos recortes de um mundo diferente. Citando apenas “O Avião da Bela Adormecida”, “Dezessete Ingleses Envenenados”, “A Luz é Como a Água” e “O Rastro do teu Sangue na Neve”, já é possível ter uma ideia da imaginação e apelo envolvidos.
A “teimosia” das histórias que precisam vir ao mundo
Como se trata de histórias tão curtas, Gabo já demonstra sua habilidade na economia de palavras para quem o estiver conhecendo naquele momento. São características internas e externas que, quando descritas, criam um cenário mental que contrasta imensamente com a exígua quantidade de páginas. Uma aula para os aspirantes a escritor e uma experiência agradabilíssima para os leitores em busca de um entretenimento rico em conceito.
Doze Contos Peregrinos, evidentemente, é uma obra de menor envergadura em se tratando de Gabriel García Márquez. A fatia de leitores que o conheceu através de Cem Anos de Solidão, ao passar diretamente para essa coletânea, pode não ter sua expectativa satisfeita, mas é preciso levar em conta a tal “peregrinação” destes contos. Ter em mente essa peculiar trajetória agrega valor à iniciativa e remete ao conceito de vida própria de cada obra.
Com nossa noção da fronteira entre o poético e o literal nublada, é um exercício fantástico para os leitores imaginar essas pequenas histórias como entidades autônomas, que impõem seu caminho no inconsciente do escritor. Algo que não teríamos como refletir sem o prefácio, onde a supremacia demiúrgica do ofício da escrita é subvertido pelo próprio autor. Isso diminui ou menospreza a atividade dos escritores em geral? Longe disso…
Apenas mostra que uns tem mais sintonia que outros.