Mesmo que você não se lembre de quando ou onde, é certo que já ouviu falar sobre o Rei Artur e sua famosa espada Excalibur. Graças às eloquentes canções e edificantes poemas dos antigos bardos, a lenda arturiana sobrevive até hoje através de releituras e adaptações em diversas mídias, sempre com doses de magia e mistério. Com o passar dos séculos, a verdadeira história de Artur foi se perdendo de tal forma que, atualmente, temos poucos fragmentos de informação confiável sobre os reais acontecimentos e pessoas que viveram durante aquele período tão singular. Com um realismo nunca visto nas narrativas em torno dessa figura, a trilogia As Crônicas de Artur (The Warlord Chronicles) nos dá um vislumbre de como seria viver na Britânia do século V e conhecer o homem por trás da lenda.
Escrita por Bernard Cornwell e publicada entre 1995 e 1997, a coleção conta com os livros O Rei do Inverno, O Inimigo de Deus e Excalibur, publicados aqui pela editora Record, cuja tradução optou por retirar o “H” do nome do protagonista. Logo de início, somos apresentados ao personagem Derfel Cadarn (pronuncia-se Dervel), um velho monge que está escrevendo a história de Artur Pendragon. Narrado em primeira pessoa sob o olhar de Derfel, acompanhamos toda a sua trajetória desde a juventude até o momento presente no mosteiro, tendo sido uma testemunha e um participante dos principais eventos daquele tempo.
Vivendo entre figuras lendárias, como Guinevere, Merlin, Morgana, Lancelot, Galahad e outros, Derfel torna-se um avatar do leitor naquele mundo. A narrativa em primeira pessoa contribui bastante para essa sensação. Como todos os seus dilemas, motivações e modo de pensar são comuns a todos nós, fica fácil nos empatizarmos com ele e embarcar nessa jornada. Se por um lado, essa característica da psique do protagonista soa um pouco desinterresante, por outro o torna nossa âncora entre uma gama de personagens variados e instigantes. Essa empatia é tão forte que, mesmo em meio à batalhas épicas e ações imprevisíveis, ficamos esperando por momentos mais introspectivos de Derfel.
Longe de parecer um escolhido ou de ter características messiânicas, o Artur de Cornwell se mostra um homem comum. Suas habilidades em batalha não extrapolam as de um bom lanceiro treinado e seus julgamentos e escolhas são falhas em diversas vezes. O que destaca Artur dos outros, é justamente o fato dele ser um homem justo. Sem almejar grandes riquezas ou glória – pelo menos não de maneira consciente -, ele simplesmente quer trazer a paz à Britânia sem quebrar seus juramentos. A resiliência deste homem justo em tempos injustos, rodeado por personagens que buscam saciar seus próprios desejos e ambições, é o que faz Derfel admirar essa figura histórica assim como nós.
Outro ponto forte da história é o modo natural e fluido que acontece a coexistência entre as diferentes culturas e crenças. Há personagens cristãos, pagãos e ainda aqueles que creem em Jeová ao mesmo tempo que também acreditam em vários outros deuses. Além disso, Cornwell também apresenta as consequências da saída dos romanos da grande ilha e posteriormente a consolidação do cristianismo, tornando o romance um prato cheio para aqueles que também se interessam por história.
A pesquisa feita sobre a cultura e os costumes do período, além dos eventos históricos, é soberba. Mesmo sem ser extremamente detalhista, conseguimos montar na imaginação um cenário completo por meio da narração. Isto acontece desde pequenos gestos, como cuspir ou tocar no cabo da espada para afastar o mal (que denunciam a superstição específica de cada personagem) quanto na própria indumentária de determinados guerreiros que já evidenciam a habilidade e experiência em combate.
Mesmo com o tom mais realista e pesquisas exaustivas sobre os eventos daquela época, a Trilogia não tem a pretensão de ser um registro histórico. O próprio autor coloca no final de cada livro as liberdades criativas que tomou e as lacunas existentes na historiografia específica.
É evidente toda a paixão que Cornwell tem por essa época e pela figura de Artur. Longe de idolatrá-lo como um predestinado, o autor nos mostra as falhas do herói e seu lado mais humano, e é justamente aí que se encontra a verdadeira admiração do escritor. Não por uma lenda, mas talvez pelo verdadeiro homem – se é que ele realmente existiu – que a originou.
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