Clarice Lispector vai muito além da superficialidade da contemporaneidade
“Andava olhando os edifícios sob a chuva, de novo impessoal e onisciente, cego na cidade cega; mas um bicho conhece a sua floresta; e mesmo que se perca – perder-se também é caminho.” (Clarice Lispector – A Cidade Sitiada, pg. 182)
Em tempos onde fotos no Instagram vem acompanhadas de frases de impacto sobre o tempo, o amor – a falta dele – ou sobre como a vida pode ser bela, uma escritora como Clarice Lispector insiste em ser uma das mais citadas. Onde quer que ela esteja, já que seus fãs sabem que ela acreditava que sempre se vai para algum lugar após o último suspiro, deve estar achando graça da falta de atenção de quem faz de seus escritos legenda para um pôr-do-sol mais fotogênico que significativo.
Que fique claro: ler Clarice Lispector não é tarefa fácil. Esta que vos escreve demorou para degustar o sabor agridoce das linhas de livros como o já citado A Cidade Sitiada e Uma Aprendizagem, ou O Livro dos Prazeres. Isto porque, ao contrário de suas frases degustadas avulso, sua prosa exige tempo.
Seus livros não costumam ultrapassar 300 páginas, mas pode-se levar anos para compreendê-los. Vejamos A Hora da Estrela, por exemplo. A cada experiência que vivemos, a cada preconceito que superamos, a cada trabalho que aguentamos infelizes descobrimos um pouco sobre Macabéa, a nordestina que parece ter o mundo contra si.
Por mais que tenhamos sempre o mesmo exemplar nas mãos, um novo livro surge diante de nós a cada leitura. É assim com qualquer autor, dirão alguns. Mas com Clarice é mais. A Bianca que tinha 15 anos não leu o mesmo A Via Crucis do Corpo que a Bianca de 30. Nenhuma palavra mudou, mas a dona do livro já não é mais a mesma.
E isto só aconteceu porque Clarice, a que melhor entende da alma, a que melhor descreveu o que sentimos em nossos momentos de introspecção, escreveu sem preocupação com ponto final. Clarice é uma vírgula. Não quer ter fim. E nunca terá, no que depender de seus leitores.
As muitas vírgulas de uma mulher
A biografia que mistura poesia em informação escrita pelo americano Benjamin Moser é uma prova de que cada sorriso, cada curva de Clarice Lispector era uma vírgula. Veio no colo dos pais para o Brasil, aprendeu a ser moça refinada no Recife, estudou direito no Rio de Janeiro, casou com diplomata, teve dois filhos.
Escrevia de forma violenta, apesar de haver carinho em suas palavras. Suas personagens buscavam o amor, mas era o amor de acordo com Clarice: instintivo e filosófico em medidas iguais, mas absorvidos em momentos diferentes. Seu primeiro romance não poderia ter outro título: Perto do Coração Selvagem. Toda mulher possui um. Algumas apenas não o sabem.
Conhecer sua vida não é pré-requisito para admirar sua obra, mas colabora para que se mergulhe alguns metros mais fundo no que ela queria transmitir. Se a clássica entrevista concedida por ela para a TV Cultura, pouco antes de falecer em 9 de dezembro de 1957, é interpretada por alguns como uma senhora que não fala coisa com coisa, eu vos digo: estamos diante de uma mulher prestes a completar 57 anos, mas que viveu muito mais por meio de suas histórias.
Justamente por não impor filtro entre o que sente, o que pensa pelo que sente e o que diz, Clarice é tida como indecifrável. Uma esfinge. Mas quem a lê sabe que nunca se consegue revelar por completo um mistério. Ser humano é uma coisa complexa. Médicos sabem onde ficam o baço e os rins, mas jamais encontrarão aquela dor que não cura com analgésico.
Clarice para menores
Clarice Lispector entende do humano desde a sua formação. Se ser adulto é algo estranho, ela acredita que é de pequeno que se aprende a complicar nossos sonhos. A Vida Íntima de Laura é um livro infantil sobre uma galinha que é campeã de ovos do galinheiro onde mora, mas não é lá muito inteligente.
Histórias para crianças com animais como protagonistas existem aos montes, mas nenhuma outra galinha de livrinhos é como Laura. Ela tem nuances que muitos personagens de livros ditos para adultos jamais terão. Clarice respeita a inteligência e a perspicácia infantil pois sabe que, depois de “grandes”, podemos perde-las.
Transformou Ulisses, sem cachorro de estimação, em narrador do ótimo Quase de Verdade, uma fábula que brinca com as palavras. Clarice tinha a língua presa, mas quem disse que isso a impedia de criar trava-línguas? Quase de Verdade fala de política, de amizade, é lírico e divertido. Criança tratada com respeito. Diz o meu sexto sentido que Clarice não iria suportar os pais que acham uma graça seus filhos que sabem de cor as canções da Galinha Pintadinha.
Adultos podem estragar tudo, ela talvez diria. Pequenos ou grandes, estudados ou em fase de aprendizagem, astutos ou desligados, não importa. Os leitores de Clarice, inclusive os que virão, sabem que não se pode encerrar a última página do mesmo modo que se iniciou a primeira.
Aquela sensação estranha de ainda digerir as derradeiras frases não tem preço. Seja Clarice ou não, ler é sempre uma aventura que se pode viver embaixo das cobertas ou atirado no sofá. E não se desespere se o seu primeiro encontro com Clarice Lispector for confuso. Ela gosta de nos ver perdidos. Afinal, perder-se também é caminho.
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