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American Gods – Os velhos arquétipos míticos dos novos deuses!

American Gods oferece uma visão revitalizada do funcionamento da mitologia, de arquétipos e da Jornada do Herói

Take a look at the toys around you/Right before your eyes (Dê uma olhada nos brinquedos a sua volta/Bem em frente aos seus olhos)

The toys are real (Os brinquedos são reais)

There’s another side of heaven/This way, to technical paradise (Existe um outro lado do céu/Por aqui, para o paraíso tecnológico)
Find it on the other side/When the walls fall down (Encontre-o do outro lado/Quando as paredes caírem)

Computer God – Black Sabbath. Álbum – Dehumanizer (1992)

Quando Ronnie James Dio, lendário vocalista do Sabbath, entoou esses versos, a tecnologia da computação ainda engatinhava na vida cotidiana das pessoas. Em 1992, apenas empresas e alguns indivíduos privilegiados possuíam computadores pessoais, e o potencial da World Wide Web ainda era questionado por alguns céticos. Entretanto, isso não privou a mítica banda inglesa de, seguindo suas tradições, colocar o dedo na ferida e cantar sobre as chagas do mundo.

Eles lançaram sua visão profética e niilista do futuro – o tema do álbum é sobre o poder de alienação e aliciamento das então novas tecnologias, além de algumas velhas conhecidas, como a TV e a mídia. Não por acaso, eles escolheram para o álbum o título de Dehumanizer – algo como “Desumanizador”.

Assim como os músicos do Sabbath, muitas pessoas interpretavam – e interpretam – a existência e o uso da tecnologia como um fator determinante no esvaziamento de sentido da existência humana. Com um quê de William Gibson, dentro do novo e crescente universo digital, seríamos apenas construtos cuja natureza é determinada artificialmente e a posteriori.

American Gods oferece uma visão revitalizada do funcionamento da mitologia, de arquétipos e da Jornada do Herói

American Gods, de Neil Gaiman!

Mas existem visões dissonantes dessa perspectiva. Quase dez anos depois do esquecido e relegado álbum da sempre profética banda inglesa, um de seus conterrâneos ofereceu um vislumbre de uma outra possibilidade de interpretação para a nova realidade digital – seriam a TV, a mídia, os computadores e a internet nossos novos “deuses”? Essa é a “tese” defendida por Neil Gaiman em seu romance de 2001, American Gods (confira também a resenha do livro).

Cibermitos para uma cibercultura

Mas, para chegarmos na proposta de Gaiman, precisamos passar por algumas etapas. Aproximadamente dois anos antes, o filósofo e sociólogo francês Pierre Levy já indicava que os novos padrões de comportamento e organização apresentados pela sociedade diante do conceito e uso do ciberespaço não necessariamente destruíam seus pilares e valores . Ao contrário, em um movimento orgânico, como em qualquer outra cultura, refigurava-os, dando início a uma nova etapa da existência humana, com novos padrões e novos termos a serem aceitos.

Nas palavras de Levy,

“a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer”.

Ou seja, é uma nova forma de organização cultural, mas diferente de qualquer coisa que já se viu antes. Ainda nas palavras de Levy, o termo “ciberespaço” especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também todo o universo de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo – ou seja, uma “sociedade” por definição per se.

Quanto ao neologismo ‘cibercultura’, ele especifica o conjunto de técnicas materiais e intelectuais, de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. Esse é o ponto de inflexão que Levy usa para distinguir o momento atual da sociedade de qualquer outro momento histórico. Para ele, mais do simplesmente um passo de evolução tecnológica, nós estamos passando para uma nova etapa histórica enquanto espécie.

American Gods oferece uma visão revitalizada do funcionamento da mitologia, de arquétipos e da Jornada do Herói

Um dos disseminadores do conceito de cibercultura, Pierre Levy!

Ele nos propõe repensar completamente o papel da tríade conhecimento/informação/comunicação na sociedade, pois esses fatores eram vistos como algo secundário, influenciados pela política e pela economia, por exemplo. Segundo ele, o advento da Internet nos expôs uma realidade que torna este tipo de visão ineficaz, tendo em vista que a sociedade passa a fazer macro-mudanças que são inexplicáveis devido a chegada da rede e, com isso, novas empresas, novos movimentos políticos, novas formas de se vender, de comprar, de se informar, se comunicar, de se relacionar.

Sendo assim, não é a economia ou a política e nem o social que estão provocando tais fatos, mas sim essas macro-mudanças no ambiente da mídia, que envolve o conhecimento, a informação e a comunicação. Levy sugere a inversão do mapa conceitual atual demostrando, por intermédio de uma lógica histórica, que, diferentemente de nossa ideia de que o conhecimento/informação/comunicação, dentro de uma nova mídia, criam o caminho na qual a economia, a política e a sociedade irão trilhar de maneira distinta no futuro.

Resumidamente, o pensador francês aborda o papel fundamental das tecnologias na esfera da comunicação, e a performance dos sistemas de signos na evolução da cultura em geral. E é aqui que está o pulo do gato. Ou do mouse, se o amigo leitor preferir. A internet e as novas tecnologias, mais do que meras ferramentas – ou brinquedos, diria Dio – são símbolos que representam essa nova etapa da nossa existência. É aqui que entram Gaiman, símbolos, arquétipos e a mitologia.

Arquétipos, Jung e um iPhone 7

Gaiman sempre foi um dos melhores e mais astutos leitores da história humana e de seus mitos. Mais do que entidades categóricas e crenças normativas, o autor entende que os mitos e os personagens que os habitam são símbolos da percepção humana de si mesma, enquanto sociedade, sim, mas também enquanto um universo cultural a ser explorado.

A ideia de que a cultura pode ser bem compreendida parcialmente através de seus símbolos, personagens e grandes feitos míticos também foi tomada de empréstimo por Gaiman – assim como por praticamente cada orador ou escritor de ficção através da história, em maior ou menor medida. Esses símbolos – que em American Gods incluem a Mídia, a Internet, etc. – são chamados de arquétipos. Um arquétipo pode ser bem definido pela própria etmologia da palavra: ἀρχέτυπον (archetupon) que significa, em uma tradução livre, “primeiro molde”.

O nome grego não vem de graça. O primeiro de que se tem notícia a usar o conceito foi ninguém menos do que Platão. Para quem faltou nas aulas de filosofia do colégio, Platão foi o responsável por desenvolver o conceito de “mundo das ideias”, onde ideias, conceitos e formas perfeitas só poderiam ser acessados através da razão.

As ideias, para Platão, eram “formas” mentais puras que foram imprimidas no espírito (lembrando que “espírito”, no cânone da filosofia clássica, é usado com significado análogo a “mente”) de uma pessoa, antes que essa fosse colocada no mundo. Elas eram coletivas, como se pressupõe que todo arquétipo deve ser, na medida em que elas representavam as características fundamentais de algo mais do que suas particularidades específicas. E, sim, você deveria ter ficado acordado naquelas aulas!

Um arquétipo, portanto, para além da interpretação platônica, pode ser uma aproximação holística de uma ideia, que permite mais facilmente uma aceitação universal do conceito nele imbuído. Isto ocorre porque os leitores, ou espectadores, conseguem se relacionar e se identificar com os personagens e a situação apresentada, tanto socialmente quanto culturalmente. Usando arquétipos comuns contextualmente, um criador procura transmitir realismo – que é diferente de “realidade” – ao seu trabalho.

American Gods brinca justamente com a ideia de arquétipos, e sobre o tipo de “universalização” de ideias as quais nos referimos, já que os velhos e os novos deuses partem de um mesmo princípio – as ideias em torno de crenças e deuses, independente de suas particularidades e daquilo que cada representa. Mais importante do que o conflito entre o velho e o novo, Gaiman contrapõe arquétipos, principalmente, para demonstrar que todos eles possuem um fundamento em comum – nós.

De acordo com inúmeros estudiosos, arquétipos tem uma representação recorrente e padrão em um cultura humana e/ou para toda a nossa espécie, lançando os pilares de uma compreensão coletiva, assim como praticamente toda a estrutura de uma narrativa.

Um dos estudiosos que deram forma a esse avanço no conceito de arquétipo foi o criador da psicologia analítica e brother de Sigmund Freud, Carl Jung. Os dois foram responsáveis por avanços significativos na compreensão do funcionamento da mente humana; entretanto, enquanto Freud se debruçava sobre uma interpretação mais individualista e concreta do funcionamento da mente, Jung observa os aspectos universais, coletivos e abstratos desse funcionamento – parte do que o levou ao estudo de símbolos e arquétipos.

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Um esboço resumido dos arquétipos de Carl Jung!

Incidentalmente, de forma análoga à Platão, os arquétipos de Jung são protótipos universais e inatos de ideias que residem em nossas mentes. A diferença, entretanto, está no fato de que para Jung esses arquétipos podem ser observados para compreender os fundamentos e motivações do comportamento de um indivíduo dentro da coletividade. O uso desses arquétipos, portanto, tem mais do que uma função abstrata narrativa ou filosófica – eles definem quem nós somos.

Observar American Gods como uma análise da sociedade americana – e global, por que não? – contemporânea não é um exagero ou um exercício de superinterpretação. A escolha de Gaiman de criar sua história dentro da sociedade americana – que dita os parâmetros do imaginário global atual – e de analisá-la dentro de um contexto mítico e arquetípico pode ser muito mais incisivo do que uma análise sociológica fria.

Os arquétipos que representam a tecnologia atual no livro são, talvez por esse motivo, mais palpáveis e acessíveis para um leitor do que um texto acadêmico árido e abstrato. Em defesa do uso dos arquétipos por Gaiman em American Gods, o próprio Carl Jung:

“Minhas visões sobre os ‘remanescentes arcaicos’, que eu chamo de ‘arquétipos’ ou ‘imagens primordiais’, tem sido constantemente criticados por pessoas a quem falta um conhecimento suficiente (…) de mitologia. O termo ‘arquétipo’ é comumente mal-compreendido como significando imagens mitológicas ou motivos, mas esses não são nada mais do que representações conscientes. O arquétipo é uma tendência a formar tais representações de um motivo – representações essas que podem variar bastante em detalhes, sem perder o seu padrão básico.”

Ou seja, tanto faz se são velhos ou novos deuses; se são encarnações de fenômenos naturais ou representações de tecnologias além da compreensão cotidiana de um indivíduos. O uso da arquetipia para representar ideias que pairam e são acessadas coletivamente estão no próprio cerne da existência e organização humana.

Se Jung estivesse vivo em 2017, além de possuir um iPhone 7 – que este colunista não pode arcar dado o seu estado de quase-mendicância – ele também entenderia a TV como um vórtice de imagens arquetípicas; a Mídia, a encarnação da sua sincronicidade, o conceito que estabelece um princípio causal como uma base para a ocorrência aparentemente aleatória simultânea de fenômenos; a Internet, como um inconsciente coletivo digital, uma experiência que forrageia, na maior parte do tempo, mais o inconsciente do que o consciente.

E se as tecnologias contemporâneas são mesmo símbolos arquetípicos da existência humana, como nos diz Neil Gaiman, não é necessário muito para dar o próximo passo – venerá-los.

A Internet de Mil Faces

Nietzsche, conhecido pelo seu bom humor e otimismo, tem uma citação interessante sobre a crença humana:

“O homem é um animal que venera; prefere acreditar em nada, do que em nada acreditar”.

Pessoas acreditam em coisas. A crença humana nos símbolos que os representam, a alteridade em relação a eles, que ganha e dá significado, é algo quase tão natural para todos os povos quanto respirar. A maioria colossal dos humanos sobre a Terra acredita, objetivamente e radicalmente, ou intuitivamente e inconscientemente, em algo que não necessariamente atende a todos os requisitos científicos e racionais para ser definido como “real”.

O início desse padrão de comportamento é, literalmente, tão antigo quanto a humanidade. As primeiras formas de crença surgem, segundo a concordância da maior parte de antropólogos e historiadores do mundo, de um bug da evolução humana – nossa inteligência se desenvolveu muito mais rápido do que os nossos recursos para verificar as inferências produzidas por ela.

No momento em que sociedades eram confrontadas com fenômenos ou seres que não conseguiam compreender racionalmente, estas preenchiam a lacuna da informação com imaginação, que, com o tempo, se cristalizava como, de fato, informação. Assim, baleias se tornaram leviatãs; relâmpagos, senhores de panteões que desconheciam o conceito de “barbear”; rios e colheitas, um ritual que determinava a passagem do tempo e – por que não? – um rolê de galera A.C.

Historiadores da religião, como o romeno Mircea Eliade e o inglês Trevor Ling, a despeito das consequências e progressões políticas de suas obras, afirmam categoricamente a mesma coisa: toda forma de crença é baseada na repetição de padrões – símbolos e arquétipos – que determinam a maneira como o mundo funciona e se organiza.

Enquanto nós nos acostumamos, no século XXI, a tratar religiões como um sistema organizado de valores, ou – de forma mais cínica – como um produto a ser adquirido para diminuir o tédio da vida cotidiana, elas continuam ecoando seu verdadeiro poder sobre a nossa espécie: a capacidade de organizar a compreensão da realidade de uma certa forma.

Eliade, por exemplo, argumenta que o pensamento religioso, no geral, se debruça sobre a distinção entre o “sagrado” e o “profano”; seja na forma de um Deus, deuses, ancestrais míticos ou, no caso de American Gods, as tecnologias de comunicação e informação, o sagrado contém toda a “realidade”, ou valor; assim como outras coisas adquirem “realidade”, ou valor, na medida em que participam do sagrado.

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O romeno Mircea Eliade!

A compreensão de Eliade sobre as religiões/mitos se fundamenta na ideia de manifestação do sagrado – ou hierofania, como ele chama. Essa hierofania oferece àquele que compartilha dos arquétipos míticos estrutura e orientação para o mundo, tanto em escala individual, quanto coletiva, estabelecendo uma ordem sagrada.

Essa manifestação sagrada não é totalmente abstrata. Essa comunhão organizada encontra diversos ecos em representações míticas que centralizam crenças e ordem social através da história. Eliade chama essas representações de simbolismo de centro – uma manifestação do sagrado na forma de uma ponte que liga o profano, a ordem natural amoral na qual estamos inseridos, ao sagrado, que oferece compreensão e verdade absoluta do universo no qual vivemos.

Seja Yggdrasil, a Árvore do Mundo da mitologia nórdica, ou La Pachamama, da crença Quechua dos Andes, a imensa maioria das civilizações do mundo antigo possuem algum arquétipo mítico que representa o símbolo central do seu povo. Esse arquétipo do símbolo de centro é tão forte, que mesmo manifestações físicas desses símbolos existiram, como os zigurates babilônios e o hebreus da antiga Judá.

Se você já entrou alguma vez na internet brasileira nos últimos tempos, você já se deparou com o meme “se tá na internet, é verdade”. Existe uma realidade brutal nessa expressão. Tomemos essa citação do próprio Eliade:

“O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se refere a realidades. (…) o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas.”

De acordo com a interpretação de Eliade, a pessoa religiosa aparentemente sente a necessidade de viver não apenas próximo, mas no centro mítico tanto quanto possível, já que o Centro é o ponto de comunicação com a hierofania – a manifestação do sagrado.

Com isso, eu convido o amigo leitor a fazer uma breve reflexão. Pense em quanto tempo você passa conectado. Pense na maneira acrítica como nós absorvemos informações online; nas relações sociais que dependem quase exclusivamente da conectividade; na viralização de informações muitas vezes não verificadas. Essencialmente, em como nós comungamos online para manifestar uma realidade que dá ordem e propósito ao mundo contemporâneo.

Dentro dessa perspectiva, seria mesmo um exagero tão grande atestar o culto a Internet e a Mídia como nossos “novos deuses” – dentro do conceito de arquétipos míticos, como aponta Gaiman no livro? Disse Nietzsche que nós preferimos “acreditar em nada, do que em nada acreditar”. E nós acreditamos na internet. American Gods já não parece mais tão ficção assim, não é?

O Monomito 2.0

Quem definitivamente junta as pontas para Neil Gaiman poder conceber o conceito por trás de American Gods, como não poderia deixar de ser, é o maior especialista em mitologia comparativa do século XX – Joseph Campbell. Quem conhece o trabalho de Gaiman, sabe que ele é profundamente referencial – mesmo os Perpétuos de Sandman são apenas reinterpretações arquetípicas de conceitos universais dentro de padrões facilmente acessíveis através da ideia do monomito.

Um ferrenho defensor da ideia de unidade psíquica da humanidade – análoga ao inconsciente coletivo de Jung – e na expressão poética através da mitologia – conceito mais profundamente trabalhado por Tolkien e sua mitopoesia – Campbell fez uso desse conceito para expressar a ideia de que toda a raça humana pode ser vista como engajada em um esforço para tornar o mundo “transparente para a transcendência”, mostrando que, sob o mundo dos fenômenos, existe uma fonte eterna que está constantemente derramando suas energias neste mundo de tempo, sofrimento e, em última instância, morte.

Gaiman adora esse conceito. Ele permeia praticamente toda a sua obra. Seja em Sandman, onde o mito residia atrás de espelhos ou dos olhos de um gato, ou em Stardust, Lugar Nenhum e mesmo American Gods, a ideia de que a natureza transcendental do mito está diretamente ligada ao mundo concreto, sendo apenas uma outra faceta deste ligado por alguma espécie de ponte – o que também condiz com os arquétipos míticos de Eliade – é o pilar de quase todas as suas histórias. Gaiman sabe que o fantástico se torna ainda mais fantástico quando ele está conectado diretamente ao real; o monomito não escapa ao mundo e as tradições contemporâneas.

E para acessar esse fantástico, o mundo dos arquétipos e dos mitos, segundo Campbell, a pessoa precisa falar sobre coisas que existiam antes e além das palavras. Uma tarefa aparentemente impossível, cuja única solução parece residir nas metáforas inerentemente encontradas nos mitos; incidentalmente, outra ideia que Gaiman simplesmente ama. Essas metáforas são afirmações que apontam para além de si mesmas no transcendental.

A Jornada do Herói, o aspecto mais bem trabalhado por Campbell dentro do conceito de monomito (que você pode ver resumida nesta animação), é sempre a história de uma mulher ou de um homem que, através de grande sofrimento, atingiu uma experiência da fonte eterna, e retornou com presentes ou dons poderosos o bastante para mudar o status quo da sua sociedade.

American Gods oferece uma visão revitalizada do funcionamento da mitologia, de arquétipos e da Jornada do Herói

A Jornada do Herói, um dos aspectos do Monomito, conforme descrita por Joseph Campbell!

Conforme essa história se disseminou geograficamente e evoluiu com o passar do tempo em inúmeras culturas, ela foi partida em várias formas locais – que Campbell chama de “máscaras” – dependendo das estruturas sociais e das pressões ambientais que existiam para a cultura que interpretava o monomito. A estrutura básica dele, entretanto, permaneceu relativamente intacta, e pode ser classificada se usando os vários estágios da jornada do herói através da narrativa.

Em American Gods, esse papel é obviamente desempenhado por Shadow Moon. Gaiman, como o escritor astuto que é, sabe que, mais do que a ponte entre o mundo real e o mito e seus arquétipos, para se fruir completamente de uma narrativa que oferece uma hierofania, é necessário um ponto de vista direto, uma porta de entrada reconhecível e amigável – alguém com quem possamos nos identificar. Esse é o papel do “herói”; no caso de American Gods, nossos olhos que contemplam o deslumbramento do fantástico, a manifestação do sagrado, a revelação do mito, são os olhos de Shadow Moon.

O fato de a narrativa de American Gods se passar em grande em uma viagem pelos EUA também não é aleatório; o próprio conceito de jornada, o fluxo de obstáculos e desafios que transformam o herói e revelam a realidade do mito para ele, estão implícitos aí.

Nada mais natural do que Gaiman usar esse conceito do monomito para apresentar a Shadow Moon – e a nós – a ideia de que o mito naturalmente evoluiu, da mesma forma como sempre fez. Os Novos Deuses são a nova etapa das narrativas do mundo antigo, que sempre existiram e continuarão existindo no futuro, quando o monomito passar a englobar também o século XXI e os seus arquétipos enquanto uma parte de si.

Gaiman sabe que o ciberespaço, usando a expressão de Pierre Levy, é apenas um outro espaço do sagrado, onde velhos arquétipos são refigurados em novas versões, mas ainda ligadas ao seu “primeiro molde”. O que ainda é ficção científca para muitos, para Neil Gaiman é apenas mais um mito. Mais um aspecto do sagrado e do profano, mais um objeto de veneração e escárnio. Um axis mundi digital. Um zigurate erguido sobre teraflops em hubs.

Sim, Ronnie James Dio. Você estava certo.

Existe um outro lado céu. Por aqui, para o paraíso tecnológico.

Neil Gaiman também sabe disso.

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