Carlos Henrique Schroeder exalta o cotidiano, mas contribui timidamente às metáforas com seu livro Aranhas
Poucos invertebrados são tão fascinantes quanto as aranhas. Muitas vezes injustiçadas, assustadoras e perigosas por suas eventuais peçonhas, estas têm pouco de seu passado evolutivo precisamente destrinchado pela ciência. Mas todos nós conhecemos seu presente e a maioria as teme ferrenhamente. Assim, Aranhas, de Carlos Henrique Schroeder, tenta misturar esta existência misteriosa com o universo particular que vivemos.
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Lançado em 2020, este livro não contém uma sinopse específica, deixando à interpretação do leitor o que cada um dos seus 32 contos sobre momentos variados dos personagens, sejam corriqueiros ou importantes, querem dizer e suas correlações do contemporâneo com as aranhas dos títulos.
É louvável que estes paralelos entre aracnídeos e pessoas seja buscado. Existe sim o intrínseco com estes fatores e que poderiam render algo definitivamente memorável. O que acaba acontecendo é que Aranhas é um livro indeciso. Ora as metáforas são claras, ora diluídas demais a ponto de causarem confusões, ora sofrem de quebra de quarta parede por parte do autor, ora têm finais definidos, ora são tão abertos que parecem incompletos. Há aqui uma necessidade de Schroeder em atingir vários públicos com oscilações literárias que no geral apresentam poucas demandas e que peca por isso. Variando entre contos e minicontos, o livro flerta com a grandiosidade das amenidades da vida apenas para depois fazer da vicissitude social um elemento perdido entre intenções.
O trivial aqui é colocado em primeiro plano, causando no leitor a sensação de que as aranhas são, definitivamente, micro-objetos que à priori pouco congregam com a temática. Essa falta de hermética da obra com a proposta não ofende os olhos, mas demonstra uma nítida falta de concatenação na busca de atingir o público que quer e gosta de substância para que a interpretação do texto não se torne especulação de texto. Muitas vezes os pontos de link entre a proposta e a execução são tão disfarçadas de uma falsa naturalidade que chega-se à conclusão que o título Aranhas poderia ser substituído por qualquer nome generalista e o efeito seria o mesmo. Ainda que o último conto busque trazer à tona um tema mais favorável à obviedade de teias (do destino) e veneno de aranha, talvez até à incapacidade de se livrar de ambas, boa parte do resto do livro peca e transforma a sutileza num calcanhar de Aquiles que faz o autor tropeçar.
Mas caso excluamos da equação literária o título da obra e todos paralelos com o supracitado animal, é possível ter bem menos frustrações. Falas pontuais e bem-vindas sobre machismo, sexualidade, autoafirmação, estafa, maldade, a falta de empatia e capitalismo funcionam. Quanto estrutura textual, os contos são padrões. Não se sobressaem de maneira efusiva, e algumas vezes orbitam as próprias pretensões. Algumas quebras narrativas tentam trabalhar o sarcasmo e não funcionam, porém não afetam a ponto de frustrar. Os contos são mais eficazes que os minicontos. Carlos Henrique Schroeder trabalha bem com o desenvolvimento ainda que algumas vezes seu desejo em transmitir vários pontos na mesma história deixem algumas coisas em aberto até demais e pareçam deficientes quanto a algo que quer ser contado.
Apenas lembrando: Contos, principalmente minicontos, lidam com o incompleto quando convém. Permitir que o leitor faça a ponte entre as próprias conclusões e as hipóteses que o autor pressupõe em suas histórias é mais do que comum em diversos gêneros. O grande problema é se esta temática/intenção cai na armadilha de tergiversar, ainda que não intencionalmente. E é isto que boa parte de Aranhas faz: Hesita, foge e faz de si mesmo um livro que usa de subterfúgios para deixar a mensagem em aberto, o que gera interpretações igualmente falhas e assim, seu aproveitamento quanto literatura torna-se questionável e módico.
A frieza das relações atuais
Talvez estejamos diante de um Seinfeld* literário, onde toda a moral seja repassada com arte do quase nada, pois até o vazio ocupa algum espaço. Sendo esta hipótese a mais aceita (e estou aqui fazendo uma elasticidade interpretativa gigantesca para chegar nesta conclusão) teríamos um clássico instantâneo se assim o for como estética. Agora, se estamos falando de um livro que quer lidar com a frieza das relações atuais e seus deméritos, usando as aranhas como provocações tangenciais, realmente pouco diz a que veio ao se tornar um livro regular e por vezes demagógico.
Então, dentro destas possibilidades narrativas, suas páginas podem ser lidas com múltiplas interpretações, dando ao leitor, inclusive, a possibilidade de amar seu conteúdo ou não, quem sabe até permitir-se ficar indiferente ao que ali é apresentado, ou ter algum tipo de epifania sobre o ser-contemporâneo ainda que este crítico não veja a sua eficácia neste caso.
Dentre estas alusões existem discussões válidas, como nos contos Aranha-Lobo (Lycosa erythrognatha) e o vazamento de vídeos íntimos, De parede (Selenops spixi) e a hipocrisia da autorrepressão sexual e violência, Lince americana (Peucetia viridans) e o ódio aos animais, entre outros. Por outro lado, há contos disformes e extremamente inferiores como Do sulco (Larinioides cornutus), Argíope multicolorida (Argiope versicolor) e Fio-de-ouro (Nephila clavipes). Estes exemplos servem para mostrar como Aranhas é um livro de potencial desperdiçado, ainda que com mais erros do que acertos, consegue agradar mesmo sofrendo pelo desequilíbrio do que realmente gostaria de ser.
Mas especificamente falando do conto Gladiadora (Deinopis plurituberculata), acabo caindo no mais significativo exemplo do melhor e do pior apresentado pelo autor. Representando uma dicotomia rara em mulheres, algo que o livro pouco o faz, ele é a mostra de que uma história interessante pode se perder no deboche. Utilizando-se de um Narrador-Onisciente, o que tinha potencial para falar sobre o abuso feminino no trabalho, acaba se tornando um pastiche mal colocado em seu final. Se este mesmo artifício fosse imposto ao último conto do livro, o Armadeira (Phoneutria nigriventer), não apenas o a inserção seria pertinente pelo tema trabalhado, como a explosão do mesmo deboche seria uma maneira brilhante de terminar o livro. Infelizmente, não acontece e a falta de condicionamento narrativo afeta diretamente o desempenho. Já que citei Seinfeld mais acima, chamarei este deslize de falta de timming cômico.
Isto posto, Aranhas é uma obra errática. Perde-se no nicho intencionado enquanto encontra em outro caminho um espaço democrático de ser interpretado à revelia. Não é tão marcante quando vende-se quanto produto e nem mesmo funciona totalmente em sua pretendida complexidade, porém é sintomático quanto parâmetro sendo separado da intenção geral da obra. Isto não o faz excepcional, contudo reside pontualíssimos bons momentos. Também há a falta de um compromisso mais real em trazer familiaridade com estes fazedores de teia que torna a obra uma discreta e desafinada erudição. Existe um conteúdo válido nos contos de Carlos Henrique Schroeder, mas talvez muito mais para aracnólogos que compreendam as entrelinhas destes artrópodes do que para o público leigo que acaba se dedicando ao macro dos contos, sem se dar conta, na maioria das vezes, dos detalhismos metafóricos que se carrega ali, o que é uma pena.
Rodapé do crítico
*Seinfeld – Seriado dos anos 90 onde se falava de temas contemporâneos com pouca coisa acontecendo em tela e carregado de sarcasmo em suas cenas.